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sexta-feira, 17 de novembro de 2023

RETRATOS… JOSÉ RAPOSO, ADORO SOTAQUES

RETRATOS…

JOSÉ RAPOSO, ADORO SOTAQUES

 


 No dia em que a mãe lhe marcou uma entrevista na Caixa Geral de Depósitos, preferiu ir fazer um teste ao teatro Adoque, em 1981. Em 50 candidatos, José Raposo foi o escolhido. Estreou-se numa peça infantil e nunca mais parou. Tornou-se uma das figuras mais populares da televisão, mas também do teatro, que para ele “é a base de tudo”. “Amo o teatro de revista, que é considerado um gênero menor. Não é nada!” garante. Durante a conversa com o nosso jornal, na Casa do Artista, instituição a que preside.

 - Como foi a sua infância em África?

 - Em Angola havia muito mais liberdade na forma de estar. Havia tempo para ter tempo. De nos apetecia ir almoçar à Barra do Cuanza, a uma distância de duas horas de Luanda, íamos até porque a gasolina era quase de borla. Quero muito voltar a Angola e só não aconteceu ainda por falta de oportunidade. Sou contraditório: odeio trabalhar, mas trabalho muito.

 - Veio para Portugal com 13 anos. A mudança foi um choque?

 - Vim só eu. Os meus pais e o meu irmão, Paulo, que é cinco anos mais novo, ficaram lá mais, dois ou três anos. Fui para casa dos meus avós, na Penha de França. Adapto-me bem a todas as situações, mas senti um choque pela realidade social. Portugal era muito cinzento.

 - Em que trabalhavam os seus pais?

 - O meu pai era contabilista na Diamang, uma companhia de diamantes, na província de Luanda Norte. Em 1968, foi para uma empresa de cafés, em Luanda. Portanto tive a vivência do mato da cidade. Quando os meus pais chegaram a Lisboa, fomos para o Seixal, que era mais barato.

 - Eles ainda são vivos?

 - O meu pai morreu há 12 anos. A minha mãe tem 86 e está ótima. Vive em Pontével, no Cartaxo, e hoje vou buscá-la para jantar lá em casa.

 - Sentiu o estigma do retornado?

 - Claro que sim. Os retornados eram conotados com os fascistas, que tinham explorado os negros, etc. Mas o meu pai sempre foi contra a ditadura. Quando vim de lá, trazia sotaque e era gozado. Aliás, adoro sotaques e apanho-os com facilidade. Ir ao Porto e ouvir falar tripeiro ferrenho é maravilhoso e não entendo o preconceito que existe em relação aos sotaques, sobretudo nas novelas.

 - Quando sentiu que queria ser ator?

 - Aconteceu naturalmente. O meu pai adorava teatro, já a minha mãe achava que eu devia ir trabalhar para a Caixa Geral de Depósitos, onde ela tinha um conhecimento que me marcou uma entrevista de emprego. Mas o meu primo viu no jornal Sete um anúncio para testes no teatro Adóque. No dia da entrevista na CGD, fui ao teste, que era feito pelo Francisco Nicholson.

 - E ficou.

 - Em 50 pessoas fiquei eu, foi uma sorte incrível! Estreei-me 1 de dezembro de 1981, na peça infantil, O Teatrinho, encenada pelo António Feio. Em janeiro, entrei na Tá Entregue à Bicharada, a última revista que se fez no Adóque, que era uma companhia de esquerda e que acabou, obviamente, por razões políticas. Aquele teatro era uma cooperativa de atores, que faziam tudo, da carpintaria à bilheteira. Foi o meu Conservatório, com o Nicholson, que me escolheu e me incentivou, o António Montez, o Henrique Viana, o António Feio, a Cremilda Gil, a Magna Cardoso, tantos,,,

 - Foi boémio?

- Claro, fazia parte. Agora é que as pessoas saem do teatro e vão a correr para casa porque no dia seguinte têm a novela para gravar. Saíamos do Adóque e íamos para o “Cacau da Ribeira”, onde nos cruzávamos com outros atores. Ficava por lá até ter barco, às 6 horas da manhã.

 - Quais são as suas referências?

 - Conheci pessoas maravilhosas, como as que já referi, e outras como a Maria José (mãe de Rita Ribeiro), o Nicolau (Breyner), que me levou para a televisão, o Octávio de Matos que me ajudou muito nas revista, e o Canto e Castro, que era um ator e um homem de outro universo. Já morreram todos e isso é muito estranho para mim…

 - Como conheceu a Maria João?

 - Em 1983, no musical Anni, encenado pelo Armando Cortez. Casámo-nos ao fim de um ano e tal, na igreja da Penha de França, e o Miguel nasceu pouco depois.

 - Separam-se ao fim de 23 anos. Acha que o facto de trabalharem juntos desgastou a relação?

 - Não, porque depois de nos separarmos continuámos a trabalhar juntos. Fomos sempre amigos, porque além dos filhos havia um grande carinho entre nós como se sabe.

 - Fizeram juntos, também, com o vosso filho Miguel, Golpe de Sorte, na SIC. Como foi esse tempo?

 - Foi um projeto que nos deu um prazer enorme e acho que para a João foi a coisa mais justa que lhe aconteceu. Normalmente, os protagonistas são sempre dois miúdos giros, o pobre que gosta da rica, o costume. E a João provou que não tem de ser assim. Ela era uma belíssima atriz. Carismática, e viu-se como o público adorou aquele Golpe de Sorte. A João já devia ter tido reconhecimento há mais tempo.

 - Quando soube o que tinha acontecido à João, o que sentiu?

 - Acho que senti o que toda a gente sentiu. Foi um choque inesperado, horrível para todos, para os meus filhos, para o João, o marido dela, para o resto da família e acho que para o país inteiro. A João era próxima das pessoas, uma cuidadora natural e isso era transparente nela. Deixou um vazio muito grande sobretudo nos nossos filhos.

 - Casou-se com a atriz Sara Barradas, que é 28 anos mais nova. Nunca sentiu a diferença de idades?

 - Estamos junto há mais de 11 anos e nunca tive consciência da diferença de idades. Não tenho jeito para falar sobre isso porque não sinto esse envelhecimento, por enquanto.

 - A Lua tem 3 anos. Qual foi a principal diferença entre ser pai aos 50 e aos 20?

 - Sou um pai-avô assumidíssimo. Claro que amo a Lua tanto como os meus outros dois filhos, a única diferença é que na altura o Miguel e o Ricardo tiveram um acompanhamento mais forte das mulheres da família, e eu era mais assistente. Agora, com a Lua, sou mais presente. A idade trouxe-me mais paciência e disponibilidade.

 - Como é contracenar com o seu filho. Dá-lhe conselhos, corrige-o?

 - O Miguel é fabuloso e não digo isto por ser meu filho. Não lhe dou conselhos e muito menos o corrijo porque ele é muito intuitivo enquanto ator. Tenho uma sorte incrível por ser pai de dois talentos.

 - Acredita na reabilitação do Parque Mayer?

- Acredito no projeto que tem agora e que é do Vasco Morgado (neto do empresário de teatro Vasco Morgado e da atriz Laura Alves), presidente da junta de freguesia de Santo António. Deixa-me muito triste que tenham acabado com os restaurantes e os locais pitorescos do Parque Mayer. Era um espaço lúdico-cultura fabuloso e acabaram co ele. Se fosse em Espanha, estaria lá! Lisboa não tem teatros porque é mais natural destruí-los do que construí-los. Este país não é para velhos nem para artistas!

 - Tem saudades de fazer revista?

 - Imensas! É um registo que me diz muito, onde estabelecemos uma relação direta com as massas e para um ator a sua arte é chegar ao grande público que é o povo. É preciso investir neste teatro!

 - Como se sente à frente de um projeto de Armado Cortez e de Raul Solnado?

 - Eles foram os grandes impulsionadores, apoiados pela Cármen Dolores, a Manuela Maria, o Otávio Clérigo, o Pedro Solnado e outros, O Raul trouxe a ideia do Brasil onde o Retiro dos Artistas existe desde 1918, e a ação foi muito intensa no início. Na Europa não há projeto destes, o que é estranhíssimo, por isso é que os atores estrangeiros ficam fascinados com esta casa, que além de residência tem a vertente cultural.

 - Que projetos têm para a Casa do Artista?

 - Já fizemos muitas coisas, mas ainda há muito para executar. Tínhamos 700 sócios e agora já são o dobro e fazemos várias ações, por exemplo, feiras de Natal e do livro porque temos bastante material de doações.

 - Qual é o valor da quota?

 - São 45€ por ano. É óbvio que não vivemos das quotas. É tudo muito difícil. Esta casa tem 22 anos e precisa de manutenção. O alarme de incêndio do teatro Armando Cortez avariou-se e o arranjo são 30 mil euros. Na residência, precisamos de dar mais conforto às pessoas e de renovar o refeitório. Há dias estragou.se um forno, de 20 mil euros. Lá conseguimos que uma empresa nos fizesse por 10 mil, que pagámos com doações de particulares, como o Dr. Fernando Póvoa. Isto só acontece em Portugal – para os empresários, os apoios não lhes compensa muito em termos de impostos. No Brasil, por exemplo, é impensável fazer teatro sem mecenato. Aqui, recebem-nos e dizem logo que o teatro não lhes interessa. A Casa do Artista tem hoje 70 utentes e está lotada.

 - O ministério da Cultura e a câmara não ajudam?

 - A ex-ministra da Cultura deu-nos 50 mil euros por ano durante três anos, o que nunca tinha acontecido. A Câmara deu-nos 90 mil euros por ano com a condição de ter aqui sediado o Teatro Infantil de Lisboa, que já cá está desde 2004. Não é fácil…

 

Orlando Fernandes, jornalista 


Revista Repórter X Editora Schweiz Oficial

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