Há sempre quem abra a boca antes de abrir o coração. Gente que fala como quem despeja lixo, convencida de que opinar é o mesmo que saber. O caso do homem que vive na estação de Bülach mostrou isso com clareza: há quem fale por maldade, há quem fale por ignorância, e há quem, por fim, ainda tenha a decência de falar com o coração.
As redes encheram-se de comentários, e deles saiu o retrato da sociedade em que vivemos. Uns ofendem, outros tentam justificar, e poucos; muito poucos; tentam compreender. Tudo começou com uma observação simples, publicada pela Revista Repórter X: um homem dorme há mais de um ano num espaço fechado da Estação de Caminhos de Ferro de Bülach, rodeado de cheiro a urina, tabaco, suor e álcool. Um espaço com porta e vidros, transformado em abrigo, onde ele dorme, come e sobrevive à vista de todos.
O caso foi comunicado à Câmara Municipal, à Segurança Social e à Polícia. Nenhuma instituição resolveu nada. O silêncio tornou-se a resposta. E é nesse vazio que aparecem os comentadores; os que acham que sabem tudo e os que, de facto, não sabem nada.
As vozes do desprezo:
Logo surgiram os insultos, como sempre. Comentários de gente sem moral, que escreve como quem cospe no chão. Más-línguas. Ignorantes:
“Deveria ser deportado para o seu país de origem.” Quando jamais foi dito que ele era imigrante!...
“Que vá dormir junto de um rio, assim o bebe, caga e mija e não cheira mal.” Esta é a moral cívica de alguns comentadores!...
“Está sempre bêbado, malcriado, enfim, não se pode falar com ele.” Afirmação falsa, ele fala com quem fala com ele e não é malcriado se não lhe fizerem nada!...
“Se tem pena, leve-o para sua casa.” Não são respostas que se dê a ninguém, pois as boas ideias são aceitáveis, mas este tipo de comentários é descabido!...
“Grande mentira, aqui só se fica legal se tiver documentos.” Quais documentos, se o homem vive no país dele!...
“Tirem-lhe as portas que já dorme menos.” Para dizer isto, estava calado!...
“Vai lá buscá-lo e enche o frigorífico com cervejas.” Bom conselho, deve ser o espelho de quem comentou!...
Palavras feias, frias, escritas por quem vive de barriga cheia e alma vazia. Há quem ache graça, há quem aplauda, há quem partilhe. É a decadência moderna, rir-se da miséria e chamar-lhe opinião.
As desculpas e as leis:
Outros, em tom mais calmo mas igualmente vazio, tentaram justificar o abandono com leis e frases prontas:
“Pela lei não pode ser obrigado a ir para uma instituição.”
Não se trata de lei e sim de uma palavra amiga; com boas palavras o homem aceitava ter ajuda, como disse ao Quelhas, mas certamente não as usam. Foi o que a polícia fez, obrigou o homem a sair dali naquela noite!...
“Há casas para sem-abrigo e refeições servidas, se ele quisesse tinha ajuda.”
Não se trata de querer, trata-se de ter capacidade emocional; voltou a ser criança!...
“Na Suíça ninguém fica na rua, se está ali é porque quer.”
Porque quer o raio que vos parta; primeiro sabei a história e depois falai!...
Falam de leis, mas não conhecem a realidade. Nunca puseram um pé num abrigo. Não sabem que há listas de espera, avaliações e restrições. Que quem está sob o efeito do álcool é muitas vezes recusado. Há pessoas que esperam meses por uma vaga. Que os sistemas automáticos da assistência social funcionam melhor para os números do que para as pessoas.
A verdade dura e crua é que quando por vezes fazem um delito ou ficam bêbados ou drogados até à exaustão e a polícia os vê ou alguém telefona, levam-nos 24 horas a uma cela para lhes fazer testes sobre o que consumiram, medicam-nos e dão-lhes banho e de comer, e no dia seguinte põem-nos a andar e depois cobram-lhes por isso, não querem saber se têm dinheiro ou não. É mais fácil dizer “não quer ajuda” do que admitir que o Estado não tem onde o pôr.
As verdades escondidas:
O homem nasceu na Suíça, filho de pai suíço e mãe sul-americana. É cidadão suíço, e não estrangeiro. Teve um acidente de trabalho e ficou inválido, doente, debilitado e em situação de abandono. Não recebeu indemnização da SUVA, foi pensionado por invalidez, valor que não dá para medicamentos, muito menos para pagar renda de casa e seguro de saúde. Confirmou à Revista Repórter X que aceita ajuda. Disse que quer tratamento, acompanhamento e casa.
Mas o que consta nos registos da Segurança Social é o contrário: “não quer ajuda.” É o truque velho da máquina administrativa; se o problema não quer ajuda, o Estado já não falha. Assim se apagam pessoas e se limpam relatórios.
As vozes que ainda pensam:
Entre a lama, houve também quem falasse com sentido. Comentários de gente que sente vergonha alheia da frieza dos outros:
“É triste chegar a este ponto, as autoridades que resolvam o problema desse senhor.” Pois, mas nem Segurança Social, nem Câmara Municipal, nem a polícia!...
“Não se deve falar assim das pessoas, ninguém está livre de acabar igual.” Ainda há quem pense antes de escrever 'merda'!...
“Devíamos ajudá-lo em vez de criticar, levá-lo à Segurança Social para mostrar que ele quer ajuda.” O Quelhas já se pronunciou a quem de boa vontade quer ir com ele e levar o Sem Abrigo à Segurança Social!...
“Há muita gente a sofrer e a Suíça já não é o que era.” Na Suíça nem tudo o que reluz é ouro!...
E também a confissão dura de quem já viveu o mesmo: “Em 2023 dormi cinco meses na rua, e em 2024 foram sete. Desde 2022 estou sem casa.”
Percebemos que não está na rua, talvez numa casa de favor ou numa instituição?!... Estes comentários são a prova de que ainda há humanidade. Mas são poucos, e perdem-se no meio da gritaria das más-línguas.
O eco dos outros lugares:
Houve quem dissesse conhecer situações semelhantes noutros cantões:
“Em Zürich também já se vê muitos a dormir nas ruas e nas paragens.”
“Em Genève são dezenas.”
“Em Dielsdorf também há um, dorme nas casas de banho públicas.”
“Há mendigos em todo o mundo, para onde se for há sempre alguém a sofrer.”
Não é o Repórter X quem afirma; são as próprias pessoas, testemunhas da realidade, a mostrar que o fenómeno se espalha e já não é exceção. A pobreza não é um rumor, é um facto. E o que a Suíça fazia questão de esconder, agora vive-lhe à porta das estações.
O sistema que falha:
A Segurança Social, quando questionada, refugia-se na lei. A Câmara lava as mãos. A Polícia diz que nada pode fazer. Mas é preciso lembrar que um Estado que se vangloria de ordem e disciplina não pode ignorar o abandono humano. Que a lei que protege deve servir pessoas, não relatórios. E que a mentira administrativa; “ele não quer ajuda”; é uma vergonha pior do que a pobreza que dizem combater.
A decadência moral:
Os comentários insultuosos mostram o que muitos se tornaram: pessoas frias, maldosas, sem empatia. Gente que acha que a pobreza é castigo, que a doença é culpa, que a miséria é escolha. Falam de “bons portugueses” e “bons suíços”, como se a dignidade tivesse nacionalidade. E quando não têm mais que dizer, atiram política ao assunto: “esse é do Chega”, “os que o defendem que o levem para casa.” Como se Portugal tivesse a ver com isto?!...
Esses são os verdadeiros sem abrigo; sem abrigo moral, sem abrigo de consciência. Anormais!...
A realidade que não se quer ver:
Há quem diga que na Suíça não há pobreza. Há. E está a crescer. Há pessoas que vivem doentes, com reformas que mal chegam para o seguro de saúde. Há quem perca a casa por não conseguir pagar a renda. Há quem viva em quartos alugados por semana. Há idosos esquecidos e doentes tratados como incómodos.
Mas enquanto a Suíça mantém a fachada de perfeição, a realidade infiltra-se nas estações, nos abrigos lotados, nas esquinas. A Suíça só sabe cobrar, mas oferecer está quieto!...
O espelho de Bülach:
O caso de Bülach é o reflexo disso tudo. Mostra o Estado que finge ajudar, o povo que finge preocupar-se, e os comentadores que fingem saber. Mostra que a sociedade perdeu a vergonha de julgar e a coragem de agir. Em vez de opinarem, metam os pés ao caminho para saberem das realidades. Metem nojo, só se lembram dos mendigos no Natal, porque assim muitos ganham à custa de colocar o nome deles?!...
O homem da estação, com o seu cheiro, o seu copo e o seu silêncio, é o retrato vivo daquilo que todos fingem não ver. E é também o espelho que muitos evitam; porque ninguém quer imaginar-se ali.
Conclusão:
A vergonha não está no homem que dorme à noite dentro daquela sala imunda com uma garrafa de whisky na mão, ou dorme durante o dia de pé com uma cerveja na mão!... A vergonha está em quem passa, vê e comenta. Está nas instituições que fingem agir. Está nos que julgam sem saber, nos que riem de quem sofre, e nos que se calam porque pensam que nunca lhes acontecerá.
O homem de Bülach é um homem só, mas é também símbolo de muitos homens; os que foram deixados para trás por um país que já não quer olhar para os seus.
autor: Quelhas
Revista Repórter X

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