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quinta-feira, 18 de junho de 2020

Condecoração; Dra. Marília Mendes

Autobiografia de Marília Mendes
Uma vida migrante

Venho de uma pequena aldeia da freguesia de Alfeizerão. Aos nove anos emigrei pela primeira vez. O meu pai vivia e trabalhava na altura no país que mais tarde veio a ser o Zimbabwe. Também esta é uma experiência comum das famílias portuguesas: o pai no estrangeiro, a mãe em casa com os filhos e todas as outras responsabilidades – a casa, as terras para cultivar e a restante família a quem dar apoio. As mulheres de Portugal conhecem bem essa experiência, porque desde sempre os homens partiram, deixando-as com o peso de manter a casa e o país a funcionar.

A chegada à Rodésia, assim se chamava então o país onde o meu pai vivia, não foi fácil. Os emigrantes conhecem as barreiras: outra língua, outros hábitos, comida tão diferente! São as coisas do dia-a-dia que nos fazem sentir estranhos num outro país. Mas há experiências deixam marcas mais profundas. O racismo, a xenofobia… A Rodésia era um país com apartheid. Embora nós portugueses, enquanto brancos, nos pudéssemos mexer-nos livremente – o que os africanos não podiam fazer, o acesso a autocarros, lojas, supermercados, parques, escolas, etc. para brancos era-lhes vedado –, não deixávamos de ser vistos como inferiores e erámos com frequência confrontados com atitudes racistas por parte da sociedade maioritária. Também esta não é uma experiência só minha, partilho-a com uma grande maioria de migrantes.

Aos quinze anos regressei a Portugal. O 25 de Abril tinha acontecido uns anos antes e a sociedade portuguesa tinha mudado. Até na minha aldeia sopravam ventos mais abertos e livres. Foi aí que tomei consciência de como uma sociedade baseada na segregação racista é desumana e injusta e como uma sociedade aberta, onde todos coabitam em paz, é a única que nos respeita a todos como indivíduos, que garante efectivamente os nossos direitos. Uma sociedade onde a xenofobia não tem espaço é mais livre e mais feliz.

Em Portugal completei a escolaridade secundária nas Caldas da Rainha e aos vinte anos fui para Lisboa. Também aqui era, como a maioria dos lisboetas, migrante – muitos vivem em Lisboa, mas têm a sua “terrinha”. Fui trabalhadora-estudante, um excelente estatuto introduzido depois do 25 de Abril: permitia, a quem não tinha dinheiro suficiente para ser só estudante, trabalhar para financiar os estudos. Foi assim que tirei a minha licenciatura e fiz a formação de professora na Faculdade de Letras de Lisboa na área de Línguas e Literaturas Modernas – variante português e alemão. O meu futuro ficou traçado, sendo a relação com o alemão programa para a minha vida.

Vivi de seguida dois anos na Alemanha, um como estudante com uma bolsa de estudantes de um instituto alemão (o melhor ano da minha vida de estudante!), o outro a trabalhar como tradutora-intérprete numa pequena empresa de traduções. Foi quando estava na Alemanha que conheci o homem que se tornou mais tarde meu marido. E aqui ficou traçada a segunda parte do meu futuro. Candidatei-me a um posto de Leitora de Português na Universidade de Zurique. Era a minha última escolha, mas foi o posto que me foi atribuído. Aceitei. Como o meu marido é suíço, era com certeza meu destino vir para a Suíça.

O posto de Leitora de Português na universidade é limitado a seis anos. No final deste período, tentámos, já com a nossa filha, ir viver para Portugal. O meu marido é um lisboeta de coração, mas não conseguiu arranjar lá emprego. Por isso voltámos para a Suíça. E, desta vez, a minha experiência assemelhou-se a tantas outras: como estrangeiros, mesmo se falamos bem a língua, estamos quase sempre em situação desfavorecida em termos laborais. A precariedade é parte integrante da nossa história migratória, também da minha. Tive muitos pequenos empregos precários como professora de português língua estrangeira, como tradutora, intérprete, revisora de textos… A minha situação profissional só se estabilizou quando em 2011 comecei a trabalhar para o sindicato Unia como secretária para a migração.
Trabalhar na área da migração, embora seja um desvio da minha carreira profissional, faz sentido na minha vida. Devido ao meu passado, mas acima de tudo porque me apercebi, quando a minha filha nasceu, da discriminação a que, também na Suíça, os estrangeiros, e em especial a comunidade portuguesa, estão sujeitos. A discriminação é mais subtil, não é o apartheid aberto da minha infância. Mas o facto de ser escondido torna-o muitas vezes mais difícil de identificar e combater. Antes de chegar ao Unia, eu já tinha trabalhado voluntariamente em projectos ligados à migração, sobretudo na área da educação de crianças e jovens. E por isso criei, com dois colegas, uma associação que tem por objectivo apoiar pais de jovens que têm problemas relacionados com a aprendizagem. Porque temos de valorizar a nossas crianças e os nossos jovens, por um futuro melhor para todos.

O meu trabalho no Unia consiste, em grande parte, na defesa dos direitos dos trabalhadores migrantes, particularmente dos portugueses. Os migrantes são os trabalhadores mais vulneráveis – muitas vezes não falam a língua e poucos sabem como fazer valer os seus direitos. Além disso, a xenofobia suíça, “escondida”, aparece regularmente à tona nas muitas iniciativas e no omnipresente discurso contra os estrangeiros. Em Setembro deste ano será votada mais uma tal iniciativa. Um dos aspectos mais significativos do meu trabalho é participar na luta contra estes ataques aos estrangeiros. Desde a infância que conheço discriminações, injustiças, espezinhamento dos direitos das pessoas. Isto apesar de todos termos os mesmos direitos humanos, independentemente da nossa origem, cor, sexo ou convicções políticas. Defender os direitos humanos dá sentido ao percurso da minha vida.


 

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