Autobiografia de
Marília Mendes
Uma vida migrante
Venho de uma pequena
aldeia da freguesia de Alfeizerão. Aos nove anos emigrei pela primeira vez. O
meu pai vivia e trabalhava na altura no país que mais tarde veio a ser o
Zimbabwe. Também esta é uma experiência comum das famílias portuguesas: o pai
no estrangeiro, a mãe em casa com os filhos e todas as outras responsabilidades
– a casa, as terras para cultivar e a restante família a quem dar apoio. As
mulheres de Portugal conhecem bem essa experiência, porque desde sempre os
homens partiram, deixando-as com o peso de manter a casa e o país a funcionar.
A chegada à
Rodésia, assim se chamava então o país onde o meu pai vivia, não foi fácil. Os
emigrantes conhecem as barreiras: outra língua, outros hábitos, comida tão
diferente! São as coisas do dia-a-dia que nos fazem sentir estranhos num outro
país. Mas há experiências deixam marcas mais profundas. O racismo, a xenofobia…
A Rodésia era um país com apartheid. Embora nós portugueses, enquanto brancos, nos
pudéssemos mexer-nos livremente – o que os africanos não podiam fazer, o acesso
a autocarros, lojas, supermercados, parques, escolas, etc. para brancos
era-lhes vedado –, não deixávamos de ser vistos como inferiores e erámos com
frequência confrontados com atitudes racistas por parte da sociedade maioritária.
Também esta não é uma experiência só minha, partilho-a com uma grande maioria
de migrantes.
Aos quinze anos
regressei a Portugal. O 25 de Abril tinha acontecido uns anos antes e a sociedade
portuguesa tinha mudado. Até na minha aldeia sopravam ventos mais abertos e
livres. Foi aí que tomei consciência de como uma sociedade baseada na
segregação racista é desumana e injusta e como uma sociedade aberta, onde todos
coabitam em paz, é a única que nos respeita a todos como indivíduos, que
garante efectivamente os nossos direitos. Uma sociedade onde a xenofobia não
tem espaço é mais livre e mais feliz.
Em Portugal
completei a escolaridade secundária nas Caldas da Rainha e aos vinte anos fui
para Lisboa. Também aqui era, como a maioria dos lisboetas, migrante – muitos
vivem em Lisboa, mas têm a sua “terrinha”. Fui trabalhadora-estudante, um
excelente estatuto introduzido depois do 25 de Abril: permitia, a quem não
tinha dinheiro suficiente para ser só estudante, trabalhar para financiar os
estudos. Foi assim que tirei a minha licenciatura e fiz a formação de professora
na Faculdade de Letras de Lisboa na área de Línguas e Literaturas Modernas –
variante português e alemão. O meu futuro ficou traçado, sendo a relação com o
alemão programa para a minha vida.
Vivi de seguida dois
anos na Alemanha, um como estudante com uma bolsa de estudantes de um instituto
alemão (o melhor ano da minha vida de estudante!), o outro a trabalhar como
tradutora-intérprete numa pequena empresa de traduções. Foi quando estava na
Alemanha que conheci o homem que se tornou mais tarde meu marido. E aqui ficou traçada
a segunda parte do meu futuro. Candidatei-me a um posto de Leitora de Português
na Universidade de Zurique. Era a minha última escolha, mas foi o posto que me
foi atribuído. Aceitei. Como o meu marido é suíço, era com certeza meu destino vir
para a Suíça.
O posto de Leitora
de Português na universidade é limitado a seis anos. No final deste período,
tentámos, já com a nossa filha, ir viver para Portugal. O meu marido é um
lisboeta de coração, mas não conseguiu arranjar lá emprego. Por isso voltámos
para a Suíça. E, desta vez, a minha experiência assemelhou-se a tantas outras:
como estrangeiros, mesmo se falamos bem a língua, estamos quase sempre em
situação desfavorecida em termos laborais. A precariedade é parte integrante da
nossa história migratória, também da minha. Tive muitos pequenos empregos
precários como professora de português língua estrangeira, como tradutora,
intérprete, revisora de textos… A minha situação profissional só se estabilizou
quando em 2011 comecei a trabalhar para o sindicato Unia como secretária para a
migração.
Trabalhar na área
da migração, embora seja um desvio da minha carreira profissional, faz sentido
na minha vida. Devido ao meu passado, mas acima de tudo porque me apercebi,
quando a minha filha nasceu, da discriminação a que, também na Suíça, os
estrangeiros, e em especial a comunidade portuguesa, estão sujeitos. A
discriminação é mais subtil, não é o apartheid aberto da minha infância. Mas o
facto de ser escondido torna-o muitas vezes mais difícil de identificar e
combater. Antes de chegar ao Unia, eu já tinha trabalhado voluntariamente em
projectos ligados à migração, sobretudo na área da educação de crianças e
jovens. E por isso criei, com dois colegas, uma associação que tem por
objectivo apoiar pais de jovens que têm problemas relacionados com a
aprendizagem. Porque temos de valorizar a nossas crianças e os nossos jovens,
por um futuro melhor para todos.
O meu trabalho no
Unia consiste, em grande parte, na defesa dos direitos dos trabalhadores
migrantes, particularmente dos portugueses. Os migrantes são os trabalhadores
mais vulneráveis – muitas vezes não falam a língua e poucos sabem como fazer
valer os seus direitos. Além disso, a xenofobia suíça, “escondida”, aparece
regularmente à tona nas muitas iniciativas e no omnipresente discurso contra os
estrangeiros. Em Setembro deste ano será votada mais uma tal iniciativa. Um dos
aspectos mais significativos do meu trabalho é participar na luta contra estes
ataques aos estrangeiros. Desde a infância que conheço discriminações,
injustiças, espezinhamento dos direitos das pessoas. Isto apesar de todos
termos os mesmos direitos humanos, independentemente da nossa origem, cor, sexo
ou convicções políticas. Defender os direitos humanos dá sentido ao percurso da
minha vida.
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