Ele, no Alentejo litoral
Absorto, caminhava por entre escombros, pontapeava
torrões de terra, bocados de adobe, argamassa projetada pelo furor do fogo.
Era jovem, pensamento a
voar para outros mundos, onde seus passos seguros pudessem ir, libertos do
medo;
Sonhava; os verdes anos
davam-lhe coragem - não podia continuar ali, até que seus pés voassem pelos
ares, ou uma bala certeira o arrancasse à vida.
Agora, caminhava entre o
verde, numa vida não totalmente sonhada, mas a si ainda chegavam ecos dos
disparos sequenciados.
Correram dias, quantos?
Olhava-se, como se duvidasse que a seiva da vida pulsasse ainda nas suas veias.
Lá longe, para lá do
deserto, onde nascera, ficaram os que amava, os seus.
Talvez, um dia, os
mundos se cruzassem, e voltasse a abraçá-los.
Ali, passava os dias, do
nascer ao por-do-sol, num mundo de plástico feito, um mundo quase do tamanho
daquele mar-cemitério que atravessara numa casca de noz, durante um tempo que
lhe pareceu infinito, até avistar o amarelo do areal.
Vivia naquele mar de
transparências, um sem-fim de flores e frutos…; gostava do verde das plantas
salpicado de pintas vermelhas, pretas e por vezes de um amarelo ou branco
cativante.
Ele arrancava ervas
daninhas, ou borrifava com líquidos de afastar insectos.
Certos dias, dava por si
a falar com elas, quando os seus companheiros de labuta não se avistavam,
dizia-lhe coisas lindas, como gostava delas, dos seus aromas, das suas cores.
Contava-lhes que na sua
terra já não se avistava o verde das árvores ou plantas, e muito menos os
frutos, porque os homens destruíram a vida, e consigo levaram o verde e a paz.
Lá, de onde veio,
dominavam as bombas, as metralhadoras e as minas; as ruas eram um buraco sem
fim, o casario, desfigurado, esventrado, fachadas ornadas de balas esculpidas
nas paredes, como se de um desenho disforme se tratasse.
Elas, sem voz que ele
entendesse, pareciam oferecer-lhe um sorriso sereno, qual ternurento abraço!
Depois lá ia, e
docemente colhia, fruto a fruto, enchia e carregava caixas, para lugar onde o
veículo as apanhasse e levasse ao seu destino.
E assim vivia, naquele
vale esquecido dos deuses, um mar de plástico que não vislumbrava o fim, a
cobrir um mar de verde, onde ele, e tantos mais, numa quase doente monotonia,
gastavam os dias.
Quando o sol se esconde
no horizonte, agarra o muito amachucado saco de plástico azul, um naco de pão e
azeitonas lá no fundo, e tal como outros, quais servos da gleba, vergados,
vagarosamente deixam o espaço do dia, em direcção à aldeia, no espaço da noite,
carregados, qual monte de lenha, numa velha e barulhenta camioneta, cujo roncar
deixa atrás de si, uma espessa nuvem de fumo negro, que tudo escurece, por onde
passam.
Aos poucos, aprendera um
pouco da língua, mas até sem ela sentia e sofria a dor da animosidade, que o
seu rosto tisnado provocava nos naturais.
Fora tão difícil
conseguir onde dormir! Nem a sua juventude, nem o seu corpo esbelto quebraram
as barreiras da desconfiança.
Por vezes, deitado sobre
a enxerga velha, o pensamento levava-o longe, para lá de todos aqueles países
que atravessara, nem sabia quantos, nem o nome.
Então, no seu rosto
nascia um sorriso; sentia-se em casa, antes da guerra, no aconchego do seu
quarto com fofa e limpa cama, os aromas a chegarem da cozinha, onde as mulheres
se afadigavam com a primeira refeição do dia, inebriantes!
Adormecia lentamente,
tranquilo, mas na sua cabeça bailava a conversa de uma idosa senhora que,
sentada a um canto da mercearia, lhe dissera – olha moço, eu também tenho uma
filha e netos no estrangeiro, foram há muitos anos, cá não se ganhava nada.
Contaram-lhe depois que,
nesta terra, houve um ditador, e a escuridão também rondava por aqui.
As balas, iam os jovens
dispará-las lá longe, contra outros, nas suas terras.
Aprenderam a cor do
medo, e a desconfiar dos negros, que eram para matar, e quem não queria matar
ou morrer, emigrava, na noite escura, a salto por montes e vales, para
atravessar Espanha, e encontrar a salvação, nos campos, na construção, e dormir
num bidon perto das grandes cidades; mas, também eles, longe da polícia
política e das balas.
Sonhos, pensamentos,
tantos, por ali a voar; não entendia a rejeição. Se soubessem o terror da
travessia daquele mar, onde tantos ficaram, ele, um menino ainda, sofreu o frio
do deserto, numa caravana de jovens, mulheres e crianças coladas ao ventre das
mães; ele, que deixara a família sem nada, tudo para o angariador, para aquela
viagem, ele que não queria matar, nem morrer.
Na janela batem já os
raios de luz da aurora, de pé, saco plástico em punho, pão, azeitonas, chá numa
garrafa, apita já a velha camioneta, e de insuspeitáveis buracos saem homens, a
caminho do mar de plástico.
Por vezes, durante o
caminho de solavancos, avista-se uma nesga de mar, não aquele que engoliu os
seus amigos, mas o outro, azul, belo, infinito, e quando até si chega o barulho
das ondas a bater nas rochas, e o doce aroma da maresia, recorda e sabe que
para lá, muito para lá dele, depois do deserto, fica a sua casa, onde um dia
foi feliz.
Partiu, sem saber para
onde, para o desconhecido, cansado dos silvos das balas, dos gritos de dor das
mulheres sem filhos, do ribombar das bombas nas montanhas.
Queria paz, e em si
habitava uma incomensurável vontade de viver!
Lídia Silvestre
Jurista
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