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domingo, 9 de outubro de 2022

Ele, no Alentejo litoral (estórias)

Ele, no Alentejo litoral

 


Absorto, caminhava por entre escombros, pontapeava torrões de terra, bocados de adobe, argamassa projetada pelo furor do fogo.

Era jovem, pensamento a voar para outros mundos, onde seus passos seguros pudessem ir, libertos do medo;

Sonhava; os verdes anos davam-lhe coragem - não podia continuar ali, até que seus pés voassem pelos ares, ou uma bala certeira o arrancasse à vida.

Agora, caminhava entre o verde, numa vida não totalmente sonhada, mas a si ainda chegavam ecos dos disparos sequenciados.

Correram dias, quantos? Olhava-se, como se duvidasse que a seiva da vida pulsasse ainda nas suas veias.

Lá longe, para lá do deserto, onde nascera, ficaram os que amava, os seus.

Talvez, um dia, os mundos se cruzassem, e voltasse a abraçá-los.

Ali, passava os dias, do nascer ao por-do-sol, num mundo de plástico feito, um mundo quase do tamanho daquele mar-cemitério que atravessara numa casca de noz, durante um tempo que lhe pareceu infinito, até avistar o amarelo do areal.

Vivia naquele mar de transparências, um sem-fim de flores e frutos…; gostava do verde das plantas salpicado de pintas vermelhas, pretas e por vezes de um amarelo ou branco cativante.

Ele arrancava ervas daninhas, ou borrifava com líquidos de afastar insectos.

Certos dias, dava por si a falar com elas, quando os seus companheiros de labuta não se avistavam, dizia-lhe coisas lindas, como gostava delas, dos seus aromas, das suas cores.

Contava-lhes que na sua terra já não se avistava o verde das árvores ou plantas, e muito menos os frutos, porque os homens destruíram a vida, e consigo levaram o verde e a paz.

Lá, de onde veio, dominavam as bombas, as metralhadoras e as minas; as ruas eram um buraco sem fim, o casario, desfigurado, esventrado, fachadas ornadas de balas esculpidas nas paredes, como se de um desenho disforme se tratasse.

Elas, sem voz que ele entendesse, pareciam oferecer-lhe um sorriso sereno, qual ternurento abraço!

Depois lá ia, e docemente colhia, fruto a fruto, enchia e carregava caixas, para lugar onde o veículo as apanhasse e levasse ao seu destino.

E assim vivia, naquele vale esquecido dos deuses, um mar de plástico que não vislumbrava o fim, a cobrir um mar de verde, onde ele, e tantos mais, numa quase doente monotonia, gastavam os dias.

Quando o sol se esconde no horizonte, agarra o muito amachucado saco de plástico azul, um naco de pão e azeitonas lá no fundo, e tal como outros, quais servos da gleba, vergados, vagarosamente deixam o espaço do dia, em direcção à aldeia, no espaço da noite, carregados, qual monte de lenha, numa velha e barulhenta camioneta, cujo roncar deixa atrás de si, uma espessa nuvem de fumo negro, que tudo escurece, por onde passam.

Aos poucos, aprendera um pouco da língua, mas até sem ela sentia e sofria a dor da animosidade, que o seu rosto tisnado provocava nos naturais.

Fora tão difícil conseguir onde dormir! Nem a sua juventude, nem o seu corpo esbelto quebraram as barreiras da desconfiança.

Por vezes, deitado sobre a enxerga velha, o pensamento levava-o longe, para lá de todos aqueles países que atravessara, nem sabia quantos, nem o nome.

Então, no seu rosto nascia um sorriso; sentia-se em casa, antes da guerra, no aconchego do seu quarto com fofa e limpa cama, os aromas a chegarem da cozinha, onde as mulheres se afadigavam com a primeira refeição do dia, inebriantes!

Adormecia lentamente, tranquilo, mas na sua cabeça bailava a conversa de uma idosa senhora que, sentada a um canto da mercearia, lhe dissera – olha moço, eu também tenho uma filha e netos no estrangeiro, foram há muitos anos, cá não se ganhava nada.

Contaram-lhe depois que, nesta terra, houve um ditador, e a escuridão também rondava por aqui.

As balas, iam os jovens dispará-las lá longe, contra outros, nas suas terras.

Aprenderam a cor do medo, e a desconfiar dos negros, que eram para matar, e quem não queria matar ou morrer, emigrava, na noite escura, a salto por montes e vales, para atravessar Espanha, e encontrar a salvação, nos campos, na construção, e dormir num bidon perto das grandes cidades; mas, também eles, longe da polícia política e das balas.

Sonhos, pensamentos, tantos, por ali a voar; não entendia a rejeição. Se soubessem o terror da travessia daquele mar, onde tantos ficaram, ele, um menino ainda, sofreu o frio do deserto, numa caravana de jovens, mulheres e crianças coladas ao ventre das mães; ele, que deixara a família sem nada, tudo para o angariador, para aquela viagem, ele que não queria matar, nem morrer.

Na janela batem já os raios de luz da aurora, de pé, saco plástico em punho, pão, azeitonas, chá numa garrafa, apita já a velha camioneta, e de insuspeitáveis buracos saem homens, a caminho do mar de plástico.

Por vezes, durante o caminho de solavancos, avista-se uma nesga de mar, não aquele que engoliu os seus amigos, mas o outro, azul, belo, infinito, e quando até si chega o barulho das ondas a bater nas rochas, e o doce aroma da maresia, recorda e sabe que para lá, muito para lá dele, depois do deserto, fica a sua casa, onde um dia foi feliz.

Partiu, sem saber para onde, para o desconhecido, cansado dos silvos das balas, dos gritos de dor das mulheres sem filhos, do ribombar das bombas nas montanhas.

Queria paz, e em si habitava uma incomensurável vontade de viver!

 

Lídia Silvestre

Jurista

 


Revista Repórter X Editora Schweiz Oficial

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