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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O Testamento de Manuel Buiça

Apontamentos indispensáveis se eu morrer.
É desta forma que Manuel dos Reis Buiça, um dos regicidas que mataria o rei D. Carlos, inicia o seu testamento. Estava-se no dia 28 de Janeiro de 1908, ou seja, a quatro dias do atentado mortal contra a mais alta figura da realeza portuguesa. O Infante D. Manuel, que sucederia a D. Carlos, seu pai, no trono, escreveu as seguintes palavras acerca dos acontecimentos vividos a 1 de Fevereiro de 1908: Eu estava olhando para o lado da estatua de D. José e vi um homem de barba preta, com um grande gabão. Vi esse homem abrir a capa e tirar uma carabina. Eu estava tão longe de pensar n'um horror d'estes que me disse para mim mesmo, sabendo o estado exaltação em que isto tudo estava que má brincadeira. O homem sahiu do passeio e veio se pôr atraz da carruagem e começou a fazer fogo. Quando vi o tal homem das barbas que tinha uma cara de meter medo, apontar sobre a carruagem percebi bem, infelizmente o que era. Meu Deus que horror. O que então se passou só Deus minha mãe e eu sabemos... O homem das barbas que tinha uma cara de meter medo era precisamente Manuel dos Reis Buiça, nascido em Bouçoães em 1876. Filho do reverendo Abílio da Silva Buíça, pároco de Vinhais, e de Maria Barroso, casou duas vezes, a segunda das quais com Hermínia Augusta da Costa. Iniciou a sua carreira profissional no exército, onde alcançou a categoria de 2º sargento no regimento de cavalaria de Bragança. Senhor de uma pontaria exímia, detinha o curso de mestre de armas e uma medalha de atirador de 1ª classe, exercendo enquanto militar o cargo de instrutor da carreira de tiro do seu regimento. Possuidor de um temperamento difícil, Manuel dos Reis Buiça teve uma carreira militar extremamente conturbada, acabando por ser demitido do exército na sequência de várias punições disciplinares, por infracções diversas. Abandonando a vida militar, enveredou pela carreira de professor do ensino livre, leccionando na Escola Nacional e na Escola Universal; ministrava também, a nível particular, lições de música e francês. De linhas fisionómicas finas, com uma barba escura com laivos de fogo, tinha uns olhos muito azuis que mostravam uma índole resoluta e exaltada. Precisamente a 28 de Janeiro de 1908, Manuel dos Reis Buiça participou na tentativa de derrube do governo ditatorial de João Franco, golpe que fracassaria e que teria como consequência o regicídio. Ficou conhecido como o Golpe do Elevador da Biblioteca, visto Afonso Costa, líder republicano, e o Visconde de Ribeira Brava, monárquico dissidente, terem sido surpreendidos de armas na mão no dito elevador, conjuntamente com outros conspiradores, quando tentavam chegar à Câmara Municipal. Não obstante terem sido presos 93 conspiradores republicanos e monárquicos (entre os quais António José de Almeida, futuro presidente da República), alguns grupos de civis armados, desconhecedores do falhanço, ainda fizeram tumultos pela cidade. A aparentemente improvável aliança revolucionária entre republicanos e monárquicos dissidentes é explicada pelo facto do regime parlamentar ter sido suspenso e o governo de João Franco ter passado a governar em ditadura. Este, em 1901, apoiado por 25 deputados, havia abandonado o Partido Regenerador, criando o Partido Regenerador Liberal. Seis anos volvidos, em 1907, João Franco, enquanto chefe do governo, solicita ao rei D. Carlos o encerramento do Parlamento, medida ditatorial que justifica com a necessidade de implantar uma série de medidas com vista à moralização da vida política. O rei acede ao pedido, deposita a sua confiança num homem que julgava à altura dos acontecimentos, e encerra o parlamento. Sem surpresa, quer a oposição monárquica, quer a oposição republicana vão discordar da medida, entrando a vida política nacional numa fase extremamente conturbada. O facto da assinatura do testamento de Manuel dos Reis Buiça ter ocorrido precisamente no mesmo dia da tentativa de implantar a República dificilmente se trata de uma coincidência. Sem dúvida alguma, o regicida previra a possibilidade de poder vir a morrer no decorrer do golpe contra a monarquia e tentara salvaguardar, se não o futuro financeiro dos seus dois filhos, pelo menos o legado do seu nome. Pode ler-se no testamento: ... ficaram-me de minha mulher dois filhos a saber: Elvira que nasceu em 19 de dezembro de 1900, na rua de Santa Martha numero ... rez do chão e que não está ainda baptisada nem registada civilmente por motivos contrarios da minha vontade; e Manuel que nasceu em 12 de Setembro de 1907 nas Escadinhas da Mouraria numero quatro, quarto andar, esquerdo. Como o próprio pai menciona no seu testamento, Elvira e o pequeno Manuel viviam consigo e com a avô materna nas Escadinhas da Mouraria. A mulher de Buiça, D. Herminia Augusta da Costa Buiça, filha de um major de cavalaria, havia já falecido. Os restantes membros da familia Buiça vivia ainda em Vinhais, para onde, segundo Manuel dos Reis, se deve participar a minha morte ou o meo desapparecimento caso se deam. Prevendo o seu eminente desaparecimento fisico, Buiça afirma ainda no seu testamento que os seus filhos perderão, em breve, o seu pai. Lamenta ainda o facto de seus filhos irem ficar pobríssimos, já que não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que soffrem. Com alguma mágoa, Manuel dos Reis Buiça termina o seu testamento pedindo que eduquem os seus filhos segundo os principios de liberdade, egualdade e fraternidade em que eu comungo..., ou seja, segundo os princípios republicanos que defendia, ... e por causa das quaes ficarão, porventura, em breve, orfãos. Não nos é possível saber se o assassinato do rei fora planeado antes ou após o fracasso do golpe revolucionário de 28 de Janeiro de 1908. Do mesmo modo, não sabemos se Manuel dos Reis Buiça escreveu o seu testamento motivado pela sua participação no golpe de Estado ou no regicídio. Seja como for, a assinatura de um decreto - no qual o rei autorizava o governo a enviar os presos implicados no golpe de 28 de Janeiro para Timor - parece ter sido um factor relevante no processo que conduziu ao regicídio. Conta-se inclusive que, ao assinar o decreto, o rei terá declarado: Assino a minha sentença de morte, mas os senhores assim o quiseram. Não é difícil imaginar Manuel dos Reis Buiça, no dia 1 de Fevereiro de 1908, a beijar os seus filhos pela última vez antes de sair da sua humilde casa no número 4 das Escadinhas da Mouraria. Vestia um grande gabão, uma espécie de casaco muito cumprido. Juntamente com Alfredo Costa, o segundo regicida conhecido, terá chegado às proximidades da Praça do Comércio, em Lisboa, algum tempo antes das 16h00, hora prevista para a chegada do Rei, da Rainha e do Príncipe Herdeiro a Lisboa. A esperá-los, estará também o odiado João Franco, político que muitos historiadores pensam ter sido o alvo principal dos revolucionários, e o Infante D. Manuel. O futuro rei estivera com a família em Vila Viçosa, mas regressara a Lisboa uns dias antes. Considerou, segundo afirmou posteriormente, que a capital portuguesa se encontrava «num estado excitação extraordinária» devido aos acontecimentos de 28 de Janeiro, não obstante ter recebido uma carta onde João Franco lhe terá garantido que tudo estava sossegado e que não havia nada a recear! Pela manhã, a família real havia iniciado a viagem de comboio até ao Barreiro, onde embarcariam num barco que finalmente os conduziria a Lisboa. Segundo o Infante, o Meu Pae não tinha nenhuma vontade de voltar para Lisboa. Bem lembro que se estava para voltar para Lisboa 15 dias antes e que meu Pae quis ficar em Villa Viçosa: Minha Mãe pelo contrário queria forçosamente vir. Recordo-me perfeitamente desta frase que me disse na vespera ou no próprio dia que regressei a Lisboa depois de eu ter estado dois dias em Villa Viçosa. Só se eu quebrar uma perna é que não volto para Lisboa no dia 1 de Fevereiro. Enquanto o comboio se dirigia a Lisboa, o jovem D. Manuel, de apenas 18 anos de idade, almoçou tranquilamente com o Visconde d'Asseca e o Kerausch. Depois do almoço esteve a tocar piano, encontrando-se muito contente porque naquele dia dava-se pela primeira vez Tristão e Ysolda de Wagner no S. Carlos. Presumivelmente à mesma hora, pelas duas horas da tarde, Manuel dos Reis Buiça almoçava com Alfredo Costa e mais três desconhecidos, numa mesa a um canto do Café Gelo, que ficava perto da porta para a cozinha. Os dois regicidas conversaram ainda, num tom muito baixo, com um quarto homem que se sentou na sua mesa. Qualquer um dos quatro homens estaria certamente ao corrente do atentado, sendo muito provavelmente conspiradores envolvidos directamente no regicídio. O comboio real continuava a sua marcha, tendo sofrido durante o caminho um pequeno descarrilamento junto ao nó ferroviário de Casa Branca. No seu interior, Luís Filipe, príncipe herdeiro, encontrava-se armado com o seu revólver de oficial do exército. Tivera o cuidado de o esconder para não preocupar sua mãe, a rainha D.ª Amélia. A comitiva régia chegou ao Barreiro ao final da tarde, onde tomou o vapor «D. Luís» com destino ao Terreiro do Paço, onde desembarcaram por volta das 5 horas da tarde. O atraso de cerca de uma hora terá certamente preocupado Manuel dos Reis Buiça, que muito provavelmente não terá tido conhecimento do pequeno descarrilamento do comboio onde viajava a família real. D. Manuel recebera um telegrama de sua mãe a informá-lo do sucedido, tendo saído do Palácio das Necessidades pouco depois das 16 horas: Fomos pela Pampulha, Janelas Verdes, Aterro e Rua do Arsenal. Chegámos ao Terreiro do Paço. Na estação (fluvial) estava muita gente da corte e mesmo sem ser. Conversei primeiro com o Ministro da Guerra Vasconcellos Porto, talvez o Ministro de quem eu mais gostava no Ministério do João Franco. Disse-me que tudo estava bem. Havia pouca gente na Praça do Comércio. Enquanto o Infante abraça a sua família no cais fluvial, Manuel dos Reis Buiça, com a espingarda escondida debaixo do grande gabão, estaria certamente muito ansioso. Provavelmente tentava perceber que tipo de medidas de segurança foram tomadas para proteger o presidente do conselho e o rei no momento do seu regresso à capital do reino. Terá tentado avistar, sem levantar suspeitas, Alfredo Costa que, armado com uma pistola, se encontrava um pouco mais à frente em relação ao seu posicionamento? ...entramos para a carruagem os quatro. No fundo a minha adorada Mãe dando a esquerda ao meu pobre Pae. O meu chorado Irmão deante do meu Pae e eu deante da minha mãe». A aproximação do Landau onde seguia a família real devem ter sido os segundos mais longos da vida de Manuel dos Reis Buiça. Certamente que os poucos metros que separavam o cais fluvial do local onde se encontrava lhe devem ter parecido uma distância enorme. A carruagem rolou sobre as pedras da histórica Praça. Sahimos da estação bastante devagar. Minha mãe vinha-me a contar como se tinha passado o descarrilamento na Casa-Branca quando se ouvio o primeiro tiro no Terreiro do Paço. Poucos segundos depois tudo tinha já terminado. Lembra-me perfeitamente de ver a minha adorada e heróica Mãe de pé na carruagem com um ramo de flores na mão gritando àqueles malvados animais, porque aqueles não são gente infames, infames... O corpo sem vida do rei D. Carlos jazia no interior da carruagem que abandonava a Praça em grande velocidade. O príncipe herdeiro ainda respirava, mas pouco depois faleceu devido aos ferimentos de bala que havia sofrido durante o tiroteio. Sobre as pedras vermelhas da Praça jaziam os restos mortais dos dois regicidas, abatidos brutalmente após terem disparado mortalmente sobre a família real... Nos meses que se seguiram, as suas campas sempre repletas de flores foram visitadas por dezenas de milhares de republicanos, tendo sido aberta uma subscrição pública destinada a auxiliar financeiramente os filhos que a morte de Manuel dos Reis Buiça deixara órfãos. (Nota: Obrigada amigo Quelhas pelo convite. Obrigada pela oportunidade de divulgar um pouco da História do nosso Portugal e noutros artigos posteriores, também do resto do mundo.)

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