Kiosk roubado trancas à porta:
Encontro-me na madrugada fria da estação de Bülach, diante do quiosque que já perdeu a inocência das portas intactas. A imagem fala antes de mim, mostra a enorme placa de madeira a substituir o vidro que tantas vezes cedeu ao impulso da noite. É ali, naquela porta vencida, que se vê a marca repetida dos assaltos, como se o quiosque tivesse sido escolhido pelas sombras para treino e hábito.
Diz o povo que, quando a porta vai abaixo, tapa-se com o que houver, e aqui está a prova disso, uma prancha áspera, erguida à pressa para segurar o que resta. Partiram o vidro mais uma vez, entraram por ali, e o silêncio da madrugada ainda parece guardar o eco do golpe. No chão, os jornais empilhados aguardam um dia que começa sempre cedo, mesmo quando a noite fez estrago.
Já noutras madrugadas passei por aqui, e senti o cheiro fresco de um assalto acabado de acontecer. Hoje, perto das cinco e meia, encontro apenas o remendo, a ferida coberta mas não curada, o reflexo das luzes no vidro intacto ao lado, e a certeza de que esta porta tem sido posta à prova demasiadas vezes.
Assim vive este canto de Bülach, entre o movimento constante dos comboios e a fragilidade de uma porta sempre recomposta, como quem insiste em levantar-se apesar das quedas. E há nisso um ensinamento, uma promessa, porque mesmo num quiosque ferido se adivinha o futuro, que não é de desistência, mas de quem continua a erguer madeira sobre vidro, até o dia vencer a noite de vez.
Nota de rodapé, a lembrar o que a imagem não mostra. Há ali, encostado aos dias e às noites, um mendigo que dorme sempre naquele canto, enrolado no próprio silêncio, como se o mundo lhe tivesse tirado o peso das horas. Podia ser olhos atentos, podia ser guarda involuntário daquele quiosque que tantas vezes cai, mas não o é, porque dorme de sono inteiro, profundo, bêbado, desses que não vigiam nada nem ninguém, deixando a madrugada entregue ao acaso.
Autor Quelhas
Revista Repórter X Editora Schweiz Oficial

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