Nesta edição de julho da Revista Repórter X, eu gostaria de apresentar um artigo, que diz muito do preconceito e rotulação que nós Portugueses fazemos, ao longo das nossas vidas com certas “personagens”, com quem nos vamos cruzando.
Em Colaboração com o
POSTAL DO DIA -
Artigo; O “Emplastro”
tem nome e é um ser humano!
Vimo-lo há uns dias a festejar mais um título do FC. Porto, mas também o
poderíamos ter visto na Procissão das Velas, em Fátima ou na Queima das Fitas.
Poucos portugueses não conhecerão o “Emplastro”. Mas poucos serão aqueles
que conhecem o Fernando Jorge.
Sobre o que aparece atrás das câmaras, nos mais variados acontecimentos
desportivos e culturais, ninguém tem dúvidas de quem se trata.
Rimos, abanamos a cabeça, questionamos um pormenor ou outro, antecipamos
onde estará a seguir.
O “Emplastro” não tem mistérios.
Mas do Fernando Jorge muito pouco, ou nada sabemos.
Nasceu no dia 25 de Abril. E logo se viu que talvez não viesse a ser como
as outras crianças.
No dia em que completou três anos, aconteceu o mesmo num outro 25 de Abril.
Também logo se viu que aquele dia não seria igual aos outros dias.
Nasceu numa família demasiadamente pobre da Praia da Madalena, no Porto.
Ficou muito cedo órfão, mas uma avó conseguiu durante alguns anos ser o seu
bocadinho de rede, o seu bocadinho de chão. Foi trabalhar, com pouco mais de
dez anos, para uma fábrica, onde era valorizada a sua força de braços pouco ou
nada normal para uma criança. Os seus bracitos levantavam máquinas, como se
tivesse o poder de um homem.
E o Fernando, a quem chamavam “Pintas” por causa de um sinal de nascença,
era mais do que criança – ele era uma criança eterna. Ingénuo. Generoso. Amigo.
O Fernando entregava o dinheiro à avó – o dinheiro da fábrica e das esmolas
que pedia todos os fins de tarde, na Igreja dos Congregados, na Praça de
Almeida Garrett, no centro do Porto.
Estou a escrever este postal para si, que julga conhecer o “Emplastro”.
Quero dizer-lhe que o Fernando nunca aprendeu a ler ou a escrever, mas na
CERCI dizia-se que sabia cortar, colar e pintar.
E sabia também sorrir e entregar-se aos outros, sem perceber o modo como os
outros o olhavam. Nuns casos abraçavam-no sem nada em troca, abraços genuínos
de gente boa. Noutros, abraçavam-no para gozar o prato.
Chegaram a levá-lo para viagens de finalistas em Espanha, chegaram a
enchê-lo de moedas para que dançasse, para que pousasse para selfies alarves,
para que fosse o monstro num circo de aberrações do princípio do século XX.
O Fernando deixa-se ir. Gosta de ser gostado.
Para ele, todos o adoram, gostam de si como ele gostou daquele passarinho
que um dia tentou apanhar num poste de alta tensão na estação das Devesas, em
Gaia. Muitos dias no hospital, uma queimadura importante na zona lombar e uma
pergunta logo que saiu dos cuidados intensivos.
“E o passarinho?”
Tem página na Wikipédia.
Costuma dormir nas redondezas do aeroporto Sá Carneiro.
Uma noite, depois de ter perdido a boleia da claque do FC. Porto, que o
levaria de regresso ao lugar onde dorme, o Fernando bateu à porta do Posto da
GNR de Barcelos, para ali poder dormir.
Foi um fartote, mas ao “Emplastro” não era possível dizer que não.
Arranjaram-lhe cobertores, para que a cela, por uma vez, fosse usada por uma
criança (ainda por cima) eterna.
O Fernando acredita em Deus.
Sempre que pode, vai a Fátima ou entra nas igrejas, onde o ajudam com
moedas e conselhos.
Numa missa da RTP, apareceu a ultrapassar toda a gente, para tomar a hóstia
em primeiro lugar; lembro-me de ter pensado que se Deus existir, talvez aquela
imagem seja simbólica.
Afinal, o Fernando, nascido num dia 25 de Abril, o Fernando Jorge que
guarda num saco de plástico papelada que não mostra a ninguém…, talvez seja até
mais do que um ser humano.
Talvez seja uma criança eterna, que existe para mostrar ao mundo o quanto
olhamos sem ver, o quanto conhecemos sem saber, o quanto somos insensíveis ao
que está para lá da superfície.
E assim vos deixo com esta reflexão, que não é apenas sobre o Fernando
Jorge, mas muito sobre cada um de nós – Susana Teixeira.
Por; LO, adaptação Susana Teixeira
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