RETRATOS…
JOSÉ
RAPOSO, ADORO SOTAQUES
No dia em que a mãe lhe marcou uma entrevista
na Caixa Geral de Depósitos, preferiu ir fazer um teste ao teatro Adoque, em
1981. Em 50 candidatos, José Raposo foi o escolhido. Estreou-se numa peça infantil
e nunca mais parou. Tornou-se uma das figuras mais populares da televisão, mas
também do teatro, que para ele “é a base de tudo”. “Amo o teatro de revista,
que é considerado um gênero menor. Não é nada!” garante. Durante a conversa com
o nosso jornal, na Casa do Artista, instituição a que preside.
- Como foi a
sua infância em África?
- Em Angola havia
muito mais liberdade na forma de estar. Havia tempo para ter tempo. De nos apetecia
ir almoçar à Barra do Cuanza, a uma distância de duas horas de Luanda, íamos até
porque a gasolina era quase de borla. Quero muito voltar a Angola e só não
aconteceu ainda por falta de oportunidade. Sou contraditório: odeio trabalhar,
mas trabalho muito.
- Veio para
Portugal com 13 anos. A mudança foi um choque?
- Vim só eu. Os meus pais e o meu irmão, Paulo, que é cinco anos mais novo, ficaram lá mais, dois ou três anos. Fui para casa
dos meus avós, na Penha de França. Adapto-me bem a todas as situações, mas
senti um choque pela realidade social. Portugal era muito cinzento.
- Em que
trabalhavam os seus pais?
- O meu pai era contabilista na Diamang, uma
companhia de diamantes, na província de Luanda Norte. Em 1968, foi para uma empresa
de cafés, em Luanda. Portanto tive a vivência do mato da cidade. Quando os meus
pais chegaram a Lisboa, fomos para o Seixal, que era mais barato.
- Eles ainda
são vivos?
- O meu pai morreu há 12 anos. A minha mãe tem
86 e está ótima. Vive em Pontével, no Cartaxo, e hoje vou buscá-la para jantar
lá em casa.
- Sentiu o
estigma do retornado?
- Claro que sim. Os retornados eram conotados
com os fascistas, que tinham explorado os negros, etc. Mas o meu pai sempre foi
contra a ditadura. Quando vim de lá, trazia sotaque e era gozado. Aliás, adoro
sotaques e apanho-os com facilidade. Ir ao Porto e ouvir falar tripeiro ferrenho
é maravilhoso e não entendo o preconceito que existe em relação aos sotaques,
sobretudo nas novelas.
- Quando sentiu
que queria ser ator?
- Aconteceu naturalmente. O meu pai adorava
teatro, já a minha mãe achava que eu devia ir trabalhar para a Caixa Geral de
Depósitos, onde ela tinha um conhecimento que me marcou uma entrevista de emprego.
Mas o meu primo viu no jornal Sete um anúncio para testes no teatro Adóque. No dia
da entrevista na CGD, fui ao teste, que era feito pelo Francisco Nicholson.
- E ficou.
- Em 50 pessoas fiquei eu, foi uma sorte
incrível! Estreei-me 1 de dezembro de 1981, na peça infantil, O Teatrinho, encenada
pelo António Feio. Em janeiro, entrei na Tá Entregue à Bicharada, a última
revista que se fez no Adóque, que era uma companhia de esquerda e que acabou,
obviamente, por razões políticas. Aquele teatro era uma cooperativa de atores, que
faziam tudo, da carpintaria à bilheteira. Foi o meu Conservatório, com o
Nicholson, que me escolheu e me incentivou, o António Montez, o Henrique Viana,
o António Feio, a Cremilda Gil, a Magna Cardoso, tantos,,,
-
Foi boémio?
- Claro,
fazia parte. Agora é que as pessoas saem do teatro e vão a correr para casa
porque no dia seguinte têm a novela para gravar. Saíamos do Adóque e íamos para
o “Cacau da Ribeira”, onde nos cruzávamos com outros atores. Ficava por lá até
ter barco, às 6 horas da manhã.
-
Quais são as suas referências?
- Conheci pessoas maravilhosas, como as que já
referi, e outras como a Maria José (mãe de Rita Ribeiro), o Nicolau (Breyner),
que me levou para a televisão, o Octávio de Matos que me ajudou muito nas
revista, e o Canto e Castro, que era um ator e um homem de outro universo. Já
morreram todos e isso é muito estranho para mim…
-
Como conheceu a Maria João?
- Em 1983, no musical Anni, encenado pelo
Armando Cortez. Casámo-nos ao fim de um ano e tal, na igreja da Penha de
França, e o Miguel nasceu pouco depois.
- Separam-se ao fim de 23 anos. Acha que o
facto de trabalharem juntos desgastou a relação?
- Não, porque depois de nos separarmos
continuámos a trabalhar juntos. Fomos sempre amigos, porque além dos filhos
havia um grande carinho entre nós como se sabe.
- Fizeram juntos, também, com o vosso filho
Miguel, Golpe de Sorte, na SIC. Como foi esse tempo?
- Foi um projeto que nos deu um prazer enorme
e acho que para a João foi a coisa mais justa que lhe aconteceu. Normalmente,
os protagonistas são sempre dois miúdos giros, o pobre que gosta da rica, o
costume. E a João provou que não tem de ser assim. Ela era uma belíssima atriz.
Carismática, e viu-se como o público adorou aquele Golpe de Sorte. A João já
devia ter tido reconhecimento há mais tempo.
-
Quando soube o que tinha acontecido à João, o que sentiu?
- Acho que senti o que toda a gente
sentiu. Foi um choque inesperado, horrível para todos, para os meus filhos,
para o João, o marido dela, para o resto da família e acho que para o país
inteiro. A João era próxima das pessoas, uma cuidadora natural e isso era
transparente nela. Deixou um vazio muito grande sobretudo nos nossos filhos.
- Casou-se com a atriz Sara Barradas, que é 28
anos mais nova. Nunca sentiu a diferença de idades?
- Estamos junto há mais de 11 anos e nunca tive
consciência da diferença de idades. Não tenho jeito para falar sobre isso porque não
sinto esse envelhecimento, por enquanto.
- A Lua tem 3 anos.
Qual foi a principal diferença entre ser pai aos 50 e aos 20?
- Sou um pai-avô assumidíssimo. Claro que amo
a Lua tanto como os meus outros dois filhos, a única diferença é que na altura
o Miguel e o Ricardo tiveram um acompanhamento mais forte das mulheres da
família, e eu era mais assistente. Agora, com a Lua, sou mais presente. A idade
trouxe-me mais paciência e disponibilidade.
- Como é
contracenar com o seu filho. Dá-lhe conselhos, corrige-o?
- O Miguel é fabuloso e não digo isto por ser
meu filho. Não lhe dou conselhos e muito menos o corrijo porque ele é muito
intuitivo enquanto ator. Tenho uma sorte incrível por ser pai de dois talentos.
- Acredita na
reabilitação do Parque Mayer?
-
Acredito no projeto que tem agora e que é do Vasco Morgado (neto do empresário
de teatro Vasco Morgado e da atriz Laura Alves), presidente da junta de freguesia
de Santo António. Deixa-me muito triste que tenham acabado com os restaurantes
e os locais pitorescos do Parque Mayer. Era um espaço lúdico-cultura fabuloso e
acabaram co ele. Se fosse em Espanha, estaria lá! Lisboa não tem teatros porque
é mais natural destruí-los do que construí-los. Este país não é para velhos nem
para artistas!
- Tem saudades
de fazer revista?
- Imensas! É um registo que me diz muito, onde
estabelecemos uma relação direta com as massas e para um ator a sua arte é
chegar ao grande público que é o povo. É preciso investir neste teatro!
- Como se sente
à frente de um projeto de Armado Cortez e de Raul Solnado?
- Eles foram os grandes impulsionadores,
apoiados pela Cármen Dolores, a Manuela Maria, o Otávio Clérigo, o Pedro
Solnado e outros, O Raul trouxe a ideia do Brasil onde o Retiro dos Artistas
existe desde 1918, e a ação foi muito intensa no início. Na Europa não há projeto
destes, o que é estranhíssimo, por isso é que os atores estrangeiros ficam fascinados
com esta casa, que além de residência tem a vertente cultural.
- Que projetos
têm para a Casa do Artista?
- Já fizemos muitas coisas, mas ainda há muito
para executar. Tínhamos 700 sócios e agora já são o dobro e fazemos várias ações, por exemplo, feiras de Natal e do livro porque temos bastante material de
doações.
- Qual é o
valor da quota?
- São 45€ por ano. É óbvio que não vivemos das
quotas. É tudo muito difícil. Esta casa tem 22 anos e precisa de manutenção. O
alarme de incêndio do teatro Armando Cortez avariou-se e o arranjo são 30 mil
euros. Na residência, precisamos de dar mais conforto às pessoas e de renovar o
refeitório. Há dias estragou.se um forno, de 20 mil euros. Lá conseguimos que uma
empresa nos fizesse por 10 mil, que pagámos com doações de particulares, como o
Dr. Fernando Póvoa. Isto só acontece em Portugal – para os empresários, os
apoios não lhes compensa muito em termos de impostos. No Brasil, por exemplo, é
impensável fazer teatro sem mecenato. Aqui, recebem-nos e dizem logo que o teatro
não lhes interessa. A Casa do Artista tem hoje 70 utentes e está lotada.
- O ministério
da Cultura e a câmara não ajudam?
- A ex-ministra da Cultura deu-nos 50 mil
euros por ano durante três anos, o que nunca tinha acontecido. A Câmara deu-nos
90 mil euros por ano com a condição de ter aqui sediado o Teatro Infantil de
Lisboa, que já cá está desde 2004. Não é fácil…
Orlando
Fernandes, jornalista