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domingo, 19 de outubro de 2025

Aos cinquenta e nove, a vida continua a ensinar-me:

Aos cinquenta e nove, a vida continua a ensinar-me:






Foi precisamente na idade dos quarenta que atravessei fronteiras e deixei Portugal, em plena crise, deixando para trás o comércio, a casa, os bens, os amigos, tudo o que era chão conhecido. Trouxe comigo a família, o coração da vida. Cheguei à Suíça com a ilusão de que tudo o que reluzia era ouro, e logo percebi que até o ar que se respira tem preço. Aqui, onde o trabalho é religião, a discriminação começa cedo, e o relógio social marca-nos como peças de reposição, aos quarenta já somos velhos para o trabalho, por mais saber que tenhamos nas mãos.

Sempre me senti jovem, ainda me sinto. Mas quando cheguei à Suíça na idade dos quarenta, comecei a evitar o meu aniversário. A minha mulher e as minhas filhas faziam-me o bolo, e eu sorria por fora, mas celebrava por obrigação. O peso da idade era mais um peso de fora do que de dentro, uma sombra social que me foi colada à pele.

Vieram os quarenta e um, os quarenta e três, os quarenta e cinco, os quarenta e oito, os cinquenta, e fui aceitando. A idade tornou-se normalidade, não batalha. Aprendi que o tempo não é inimigo, é espelho, é sabedoria.

Mas a discriminação continuou, principalmente no trabalho com a idade. Cada não que ouvi era uma porta fechada, mas também uma semente guardada. E as poucas vezes em que o sim chegou, foi certeiro. O sim verdadeiro venceu o ruído dos nãos. E hoje sei, cada recusa foi ensaio do destino. Estudei. Vivenciei. Aprendi. Tenho o trabalho que vai ao encontro dos meus afazeres como designer gráfico. Venci!

Mentalmente, aos cinquenta e nove, sinto-me bem. Espiritualmente, melhor ainda. Mas o corpo, que mostra firmeza por fora, esconde as mazelas por dentro. Há dores, há remédios, há fadiga, mas há vontade. Nunca baixei os braços. Trabalho o meu interior como quem afia uma ferramenta.

Costumo dizer que andamos bem por fora, mas por dentro há fissuras. Ainda assim, enquanto os olhos virem o belo, enquanto o paladar saborear o bom, enquanto os ouvidos se alegrarem com o som que amamos, temos vida. E é nessa vida e nesse espírito que caminho.

A doença vive comigo, a dor vive comigo, mas também vivem comigo os meus hobbies, os meus afazeres, a família e os poucos amigos escolhidos, os que me lembram que ainda sou jovem. Pareço mais novo do que a idade que trago, não fosse esta barba branca que denuncia o tempo. O cabelo mantém-se, as rugas são poucas, e o espelho mostra um homem que parece Pai Natal apenas pela barba branquinhada, mas ainda acredita nos milagres que faz com as próprias mãos.

Eu não quero morrer, não quero ir, mas levai-me, levai-me inteiro, não quero ser queimado, basta o meu sofrimento em vida, era o que faltava!

Refugio-me nas boas acções, sou o ombro e o conselho de muitos em causas nobres e sociais. Refugio-me no pecado e no fruto proibido. Refugio-me no jornalismo e na palavra, na Revista Repórter X. Refugio-me nas minhas letras musicais. Refugio-me nos meus livros. Refugio-me nos eventos de fado, nos modelos nas passerelles e nas galas da Repórter X, nas entrevistas na rádio, na televisão e nos jornais. Refugio-me no apego à minha terra natal e à política social, ao associativismo. Refugio-me na política local e nacional, envolvendo a Suíça com causas sociais e culturais. Refugio-me na própria idade, e por isso não posso ficar velho, velhos são os trapos.

Sinto-me jovem por tudo o que contei e tudo o que quero contar se chegar aos sessenta, aos setenta, aos cem anos...!

Sempre trabalhei, sempre lutei, nada me impediu de fazer nada, nem um transplante renal. Vi morrer, vi nascer, e eu renasço todos os dias. Tive quase tudo o que quis, tive e perdi, perdi e achei, nada era meu e tudo é meu, e ficarei sem nada, sabe-se lá quando.

Aos cinquenta e nove confirmo o que aos quarenta pressenti, a idade é ferramenta, não sentença. A experiência é ouro, não ferrugem. E a vida, quando bem vivida, não envelhece, amadurece.

Autor: Quelhas


Nota crítica:

O texto “Aos cinquenta e nove, a vida continua a ensinar-lhe” revela um percurso de vida autêntico, contado sem máscaras nem pretensões. É o retrato de um homem que atravessou fronteiras, deixou tudo o que tinha, e descobriu que o ouro aparente do estrangeiro também pode ser feito de dor, de trabalho e de resistência.


Há três forças que o sustentam:

1. A autenticidade: A voz do autor é real e sentida. Não há artifício nem figura de estilo desnecessária. Cada frase tem o peso de quem viveu o que escreve. A verdade é o seu instrumento.


2. A estrutura: O texto tem uma travessia clara: parte da perda e do exílio, segue para a aceitação e culmina na serenidade de quem aprendeu com o tempo. É o percurso completo de uma alma que amadureceu sem se render.


3. A dimensão humana e universal: Embora pessoal, o texto fala de muitos. De todos os que emigraram, trabalharam, envelheceram, foram postos de lado e, ainda assim, não deixaram de lutar. É íntimo, mas colectivo.


A obra mostra que envelhecer não é desistir, é compreender. Que a idade, quando vivida com coragem e fé, não é peso, é herança. E que o autor, com o seu olhar lúcido e solidário, transforma a experiência num hino à dignidade humana.


— Secção de crítica literária, Revista Repórter X 


Prof. Ângela Tinoco 




Revista Repórter X – Editora Schweiz Oficial


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