O grande traidor numa determinada versão da descolonização portuguesa seria
Soares. Isso assenta em erros e mitos": o outro caso de "traição à
pátria"
A Joana Azevedo Viana diz que antes
de Marcelo Rebelo de Sousa, Mário Soares também foi acusado de "traição à
pátria" por causa de Angola. A queixa chegou mesmo ao Supremo
Foi na estrada nacional que liga
Lagos a Portimão, no famoso Hotel Penina, que depois de vários dias de
negociações com os três movimentos de independência de Angola – MPLA, FNLA e
UNITA – Mário Soares assinou os chamados Acordos de Alvor, que firmaram o
direito da ex-colónia à autodeterminação. Estávamos em 15 de janeiro de 1975 e
esse direito estava consagrado há 30 anos na Carta das Nações Unidas.
Portugal chegou tarde à democracia
e, por conseguinte, tardou também o fim da ocupação dos países africanos que
colonizava, onde desde 1961 milhares de jovens soldados portugueses e de
guerrilheiros e civis dos países ocupados morriam no campo de batalha – um dos
grandes motores da Revolução de 25 de Abril de 1974.
Quando, menos de um ano depois do
fim da ditadura, Mário Soares abriu a porta à independência de Angola – que, ao
contrário de outras ex-colónias, como Moçambique e Guiné-Bissau, tinha não um
mas vários movimentos independentistas armados, envolvendo negociações mais
complexas – houve quem discordasse da decisão e tenha sentado o então ministro
dos Negócios Estrangeiros no banco dos réus. A queixa por “traição à pátria”
foi apresentada em dezembro de 1979.
“É fácil perceber que alguns das
centenas de milhares de colonos portugueses que foram forçados a sair de Angola
e Moçambique procurem alguém a quem culpar e é típico que, em guerras de
guerrilha que nunca terminam com uma vitória convencional evidente, algumas
lideranças militares e alguns veteranos apontem para os políticos e para uma
facada nas costas para justificar a derrota, alimentando o mito de uma vitória
traída”, escrevia em 2017 o historiador Bruno Cardoso Reis, investigador do
ISCTE. “O grande traidor numa determinada versão da história da descolonização
portuguesa seria Soares. Ora essa ideia assenta numa série de erros e mitos.”
Um desses erros ficou patente no
processo interposto contra Soares e vários outros elementos da Junta de
Salvação Nacional, do Conselho de Estado, dos Governos Provisórios e do
Conselho da Revolução. A acusação de “traição à pátria” imputada aos protagonistas
da revolução democrática chegaria à barra do Supremo Tribunal de Justiça (STJ)
dois anos depois da queixa.
“Todo o processo de descolonização
foi iniciado e levado a cabo ao abrigo da Lei Constitucional n.º 7/74, de 27 de
Julho, em obediência aos princípios que formavam o ideário da Revolução de 25
de Abril de 1974 e que se encontram expressos no Programa do Movimento das
Forças Armadas (MFA)”, lê-se no ponto 13 do acórdão do STJ, datado de 20 de
janeiro de 1982 e assinado pelo juiz conselheiro José Luís Pereira, que a CNN
consultou.
O caso Mário Soares
O Supremo tinha sido chamado a
pronunciar-se após Soares e os restantes acusados, entre eles Almeida Santos,
Melo Antunes, Costa Gomes e Saraiva de Carvalho, terem sido “amnistiados” pela
Relação de Lisboa em 23 de abril de 1980. Os queixosos, um conjunto de 18
personalidades incluindo militares na reforma, engenheiros e jornalistas,
acusavam-nos de “terem usado de meios fraudulentos, visando a separação de
parcelas do território português e, além disso, colaborado estreitamente com os
que pretendiam obter aquela separação por meios violentos, cometendo assim o
crime previsto e punido pelo art. 141.º n.º 1 do Código Penal”.
Na sequência destas acusações, a 23
de fevereiro de 1980, o juiz do 3.º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa
ordenou o arquivamento do processo, sob o fundamento de que, “mesmo a
provarem-se os factos denunciados, eles deixaram de ter relevância jurídico-criminal,
em face do art. 5.º da Constituição” que entrara em vigor em 1976. Os
participantes interpuseram recurso a essa decisão, a que a Relação de Lisboa
também não deu provimento dois meses depois, embora tenha alterado o despacho
“no sentido de julgar amnistiados os factos participados”, com base na Lei n.º
74/79 de 23 de Novembro.
Isto conduziu ao derradeiro recurso
ao Supremo, com o procurador-geral-adjunto a opinar então que o pedido devia
ser rejeitado. E assim foi. “Os factos denunciados não integram o crime do art.
141.º do Código Penal – nem qualquer outro. Daí que a aplicação da amnistia não
tenha cabimento”, lê-se na decisão do STJ. “Nestes termos, [os juízes] negam
provimento ao recurso, alertando, todavia, o acórdão recorrido em ordem a
substituir a decisão da primeira instância, que se confirma, ainda que com
outros fundamentos.”
Para Bruno Cardoso Reis,
“responsabilizar principalmente Soares pelo fim do império português e pelos
seus custos em nome de uma suposta traição a uma pátria pluricontinental que
ele não reconhecia é historicamente insustentável”. Da mesma forma que, 50 anos
depois do 25 de Abril, os constitucionalistas consideram insustentável o
processo-crime iniciado pelo Chega na semana passada contra o atual Presidente
da República, novamente por alegada “traição à pátria”, após Marcelo Rebelo de
Sousa ter sugerido que Portugal deveria liderar um processo de reparações
históricas face ao período do colonialismo, dando como exemplo o perdão de
dívidas às ex-colónias.
“Puxar para aqui o direito penal,
na minha opinião e com o devido respeito pelos atores políticos que estão a
fazê-lo, tem apenas um objetivo – o de dramatizar”, defende a
constitucionalista Teresa Violante à CNN. “O direito penal aqui tem apenas um
papel oportunista ou instrumental que é o de dramatizar o efeito do debate. Mas
o verdadeiro debate que se quer travar aqui não é jurídico, é político.”
Motivos que fundamentam iniciativa
do Chega "não se enquadram"
O caso de Soares e, décadas depois,
aquele que agora tem Marcelo como alvo, não são uma novidade no contexto
português. Já em agosto de 1954, vários dirigentes do Movimento Nacional
Democrático (MND), à cabeça Ruy Luís Gomes, foram presos pela PIDE por defenderem
publicamente negociações entre o Governo português e a União Indiana, tendo
sido julgados no Tribunal Plenário do Porto e condenados por traição à pátria.
Enfrentando 50 anos de prisão, passaram por vários julgamentos até terem sido
libertados em 1957.
A distinguir os casos mais antigos
daquele que o Chega iniciou está o facto de nem Mário Soares nem Ruy Luís Gomes
estarem, à data dos processos, a desempenhar as funções de chefe do Estado
português. E à luz da Constituição, existem procedimentos específicos para
julgar um Presidente da República por suspeitas de atraiçoar a pátria.
Se o alegado crime não estiver
relacionado com as funções que desempenha, o eventual julgamento e
processo-crime só ocorre após cumprir o seu mandato. Caso contrário, “se são
factos relacionados com o exercício das funções, é necessário que a Assembleia da
República autorize a instauração de um processo criminal” que se processa em
duas fases distintas, adianta a especialista em Direito Constitucional.
“Em primeiro lugar, há a
iniciativa, que tem de ser subscrita por um quinto dos deputados, e depois a
aprovação da iniciativa, que tem de ser sancionada por uma maioria
significativa de dois terços dos deputados em efetividade de funções.” Dado
que, nas legislativas de março, o Chega elegeu 50 deputados à Assembleia da
República, o primeiro requisito está cumprido à partida. Mas com a objeção
declarada de todos os outros partidos, o chumbo da iniciativa é mais do que
certo. E aqui entra uma outra questão sobre o que disse ou não Marcelo Rebelo
de Sousa – e se isso se enquadra num crime de “traição à pátria” como definido
no Código Penal.
“Daquilo que foi avançado por André
Ventura, os motivos que fundamentam esta iniciativa não se enquadram”, diz
Violante. “O recorte legislativo pretende enquadrar factos que atentem contra a
integridade da independência nacional, contra a integridade do território,
contra a segurança do Estado, contra a própria soberania, e em nada daquilo que
foi invocado até agora e daquilo que conhecemos das declarações se pode
subsumir o tipo jurídico-penal de traição à pátria.”
Mesmo que, como alegou o líder do
Chega, Marcelo tivesse acusado Portugal de ser “criminoso” no contexto do
colonialismo, tal não se enquadraria no que está definido como um crime de
traição à pátria. “Estas são questões pertinentes do campo do debate político,
e nesse campo podem e devem ser travadas. O que o sr. Presidente fez naquele
momento, e em momentos anteriores, foi suscitar o debate acerca de eventuais
reparações e do eventual papel que Portugal teve na História relativamente ao
colonialismo – um debate que não é original de Portugal, está a ser travado em
vários outros Estados e que nada tem a ver com as situações que são abrangidas
pelo crime de traição à pátria.”
No acórdão que, há 42 anos,
absolveu Mário Soares deste tipo de crime, o STJ destacava que, “embora o
Código Penal separe os crimes contra a segurança exterior do Estado dos crimes
contra a segurança interior do Estado, nada impede que sejam todos considerados
crimes objetivamente políticos”. E continua: “É que, na realidade, não há razão
para negar o caráter político das incriminações destinadas à proteção da
independência e da integridade do Estado.” Neste ponto, o Supremo citava Teresa
Pizarro Beleza, que no primeiro volume do Direito Penal, datado de 1980,
definia que “os crimes políticos são fundamentalmente os crimes contra a
Segurança do Estado”, nomeadamente “crimes de traição, crimes de espionagem e
de sabotagem”.
À justiça o que é da justiça, à
história o que é da história
Hoje professora catedrática da Nova
School of Law, Pizarro Beleza assinou há alguns dias um artigo de opinião onde
questionava se todo o caso Chega vs. Marcelo se qualifica como uma “traição à
pátria ou à seriedade da argumentação política” e onde recordava precisamente o
processo de que Mário Soares foi alvo no pós-descolonização.
“Marcelo Rebelo de Sousa é agora
designado pela extrema-direita como o novo hipotético arguido de idêntico
crime, por ter ousado reconhecer a responsabilidade de Portugal pelos danos
causados por longos séculos de colonialismo, incluindo situações historicamente
documentadas de massacres de populações civis, denunciados por terceiros, como
o já bem conhecido caso de Wiriyamu, em Tete, Moçambique, em dezembro de 1972,
revelado pelo padre católico britânico Adrian Hastings e publicitado pelo The
Times” – massacre pelo qual, há dois anos, o então primeiro-ministro português
pediu desculpas oficiais em nome da República durante uma visita a Moçambique.
No mesmo artigo, Pizarro Beleza
destaca que, “segundo as regras da Constituição da República e todas as
descrições contidas nas várias leis penais, a começar pelo código do mesmo
nome, só existem os crimes expressamente previstos em lei anterior [...] e,
como tal, punidos com pena de prisão ou multa ou qualquer outra, tipicamente a
privação da liberdade, em primeira linha ou em sucedâneo”.
Essa mesma ideia é destacada por
Teresa Violante. “Quando estamos a falar do direito penal, é um ramo do Direito
muito específico que pode desencadear a aplicação de penas de prisão, e estamos
a falar de penas de prisão muito altas, não estamos a falar de eventuais
bagatelas. E portanto desacordos – que os há e são profundos – relativamente à
questão do colonialismo, do debate que deve ou não ser travado e em que moldes,
[pertencem] ao debate político.”
Até se pode "com algum
esforço", escreve Teresa Pizarro Beleza, “perceber a lógica dos que
tentaram incriminar Mário Soares, apesar da sua razão histórica”, mas “a ideia
de responsabilizar criminalmente o atual Presidente da República com base nas
declarações feitas, nas vésperas do 25 de Abril, no jantar com a imprensa
estrangeira, parece-me, simplesmente, disparatada”. Sugere também que esta
acusação “não é de todo inocente": “Muito pelo contrário.” Como diz
Violante, “o verdadeiro debate que se quer travar aqui não é jurídico, é
político”. Em 1982, o Supremo já destacava na sua decisão de ilibar Mário
Soares: “Se porventura houve erros ou desvios no processo de descolonização, a
HISTÓRIA não deixará de fazer incidir sobre eles o seu JULGAMENTO!”
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