Uma sardinha a
dividir por três
Por; José
Rafael Trindade Reis
Longe vão os
tempos em que as aldeias fervilhavam de vida. As casas estavam cheias de gente
que trabalhava nos campos, alegre, pois não conheciam outro modo de vida e os
seus desejos de ambição resumiam-se às colheitas fartas que assim afastavam o
espectro da fome. Mas havia fome, muita fome! Estou a falar de um tempo antigo,
do qual ouvia histórias de sardinhas divididas por três. De côdeas de broa
untadas com banha a servir de manteiga. De castanhas piladas cozidas quando as
batatas já se haviam acabado e de refeições em que a malga ou bacia era só uma,
já rachada e consertada com gatos nas costas e se colocava no meio da mesa
(quando havia mesa e no caso de não haver, de roda do bordo da fogueira, ao
borralho), onde a família comia em silêncio depois de dar graças ao divino por
mais aquela refeição... O silêncio da refeição não se devia ao não terem que
dizer, mas sim ao tempo que perderiam se ocupassem a boca com palavras em vez
de mastigar o quinhão que lhes cabia. As batatas eram cozidas com a pele por via
de não desperdiçar nada. A broa, muitas das vezes, mesmo dura, era o único
conduto que havia.
As crianças
pequenas (canalha, como lhes chamavam) eram deixadas na rua todo o dia,
entregues a elas próprias e aos irmãos do meio, enquanto os pais e os irmãos
mais velhos cuidavam do renovo e das colheitas nas fazendas onde estavam as
quelhadas que possuíam. Algumas bem longe das casas do povo, sendo que seriam
precisas uma ou duas horas de caminho, conforme a lonjura. Outros iam tratar de
guardar as ovelhas na serra, enfrentando frio e lobos que nesses tempos por ali
havia com fartura.
Certa vez,
contava o meu pai, numa tarde em que a fome começava a apertar e sem lhes terem
deixado nada a que deitar o dente, convenceu o Silvano, seu amigo de
brincadeiras, a escalar a parede do velho casebre onde este morava, porque se
sabia, estar pendurado na trave o cesto das sardinhas em salmoura, trazidas na
véspera do mercado de Côja.
Foto de Rui
Carvalho
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