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domingo, 6 de abril de 2025

O Kit de enlatados: entre a realidade da guerra e a santa ignorância:

O Kit de enlatados: entre a realidade da guerra e a santa ignorância:

                                 
                                  Por João Carlos Quelhas

Muito se tem falado ultimamente sobre os chamados “kits de sobrevivência”. As redes sociais inflamaram-se, os vídeos multiplicam-se, os especialistas de ocasião surgem como cogumelos e até alguns líderes políticos, como o Presidente francês Emmanuel Macron, lançam avisos: “preparem-se”. Mas preparem-se para quê?

A verdade é que esses kits não são uma novidade. Sempre existiram — em diferentes formas e contextos — desde que o mundo é mundo. Sempre houve guerras, sempre houve catástrofes naturais, sempre houve o imprevisível. E nessas alturas, as pessoas preparavam-se como podiam. O meu avô, o Sargento Quelhas, andou na Primeira Guerra Mundial de 1914, e nessa altura também se falava, e muito, sobre o que cada um deveria levar consigo. O kit de sobrevivência de então era talvez diferente do de agora, mas a lógica era a mesma: resistir, aguentar, sobreviver.

Na Suíça, por exemplo, é comum existirem bunkers. Isolados nas serras ou embutidos nos edifícios mais recentes, muitos prédios têm um. No entanto, esses espaços não vêm equipados com comida. Cada cidadão é responsável por garantir os seus próprios mantimentos. E aqui entra uma realidade crua: se hoje, em tempos de suposta paz, já é difícil para muitas famílias comprar comida para o dia-a-dia, como se exige que tenham um kit de enlatados a mais, que pode nem sequer vir a ser usado e acabar por passar a validade? Um desperdício alimentar em nome do medo.

Porque, sejamos claros: se vier a fome, será para todos. Se houver guerra, também será para todos. Como o sol e a lua. Não escolhem ricos ou pobres. Nascem para todos. Morremos todos da mesma maneira. Então para quê esta propaganda exagerada? Será apenas mais uma moda das redes sociais, daquelas que seguem a lógica da “Maria vai com as outras”? Será este medo colectivo mais um produto da ignorância ou uma manipulação de massas?

Durante a pandemia de Covid, vimos pessoas a correrem aos supermercados e a esgotarem o papel higiénico. O papel higiénico! Ainda se fosse comida… mas não. Houve quem se preocupasse mais com o rabo do que com o estômago. Sempre critiquei isso. Sempre. Porque se faltasse comida, lavar o cu fazia-se em casa. Mas sem comida, não se sobrevive. O egoísmo tomou conta das prateleiras. E agora, voltamos a ver a mesma tendência: cada um por si.

A verdade é esta: um kit que dure uma semana, quinze dias, talvez um mês... não sustenta ninguém numa guerra prolongada. E se a guerra durar dois, três, quatro, cinco anos? O que adianta esse kit? Vamos todos morrer à fome mais tarde. É o medo a criar conforto temporário. É a Santa Ignorância a guiar decisões sem lógica.

Aqui em casa, por exemplo, tenho frigorífico e arca congeladora. Estamos sempre a comprar e a encher, mesmo com tudo cheio. Já é uma espécie de kit permanente. Mas esquecemo-nos de uma coisa: os produtos mais velhos ficam para trás. Temos sempre a tendência de tirar os da frente. E quando damos por ela, os de trás estão a ficar velhos, vencidos, esquecidos. Mesmo quem acha que está prevenido, pode estar apenas a alimentar o lixo futuro.

O mundo está a ficar estranho. As pessoas estão a ficar egoístas. Cada um olha para o seu próprio umbigo. Esquecem-se que numa catástrofe, ou nos salvamos todos, ou morremos todos. Que a fome, a guerra, a paz e a esperança devem ser partilhadas. Mas não. Continuamos a construir kits individuais, em vez de soluções colectivas. Continuamos a pensar como ilhas, quando deveríamos ser continente.

O medo é natural. Mas quando se transforma em histeria, perde-se o discernimento. E quando se perde o discernimento, perde-se tudo. Pobres de cabeça! 

João Carlos Quelhas


Revista Repórter X Editora Schweiz Oficial

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