Camões era cego de um olho, não dos dois. Cego fica o ensino e a representação quando, em nome de Portugal, se escolhe não ver a língua que nos define:
A afirmação é do deputado José Dias Fernandes e marca o início de um episódio que não pode ser tratado como detalhe protocolar nem como mera opção académica. Na Embaixada de Portugal em Paris, durante uma conferência dedicada aos cinquenta anos das independências dos países africanos de língua portuguesa, os intervenientes optaram por falar em inglês. Não em português. Não na língua de Camões. Não na língua do país que representavam.
Trata-se de uma junção clara entre notícia e crítica. Notícia, porque o facto ocorreu, foi público e verificável. Crítica, porque é vergonhoso falar outra língua quando se representa oficialmente Portugal. Uma Embaixada não é neutra, não é abstracta, não é apenas um espaço logístico. É Portugal fora do território. E Portugal fala português.
O deputado José Dias Fernandes reagiu por escrito, enviando uma carta de repúdio directamente ao embaixador Francisco Ribeiro de Menezes. Essa carta chegou à redacção da Revista Repórter X, que a denunciou e tornou pública, assumindo a crítica jornalística do sucedido. Só depois dessa publicação é que o embaixador respondeu às críticas, resposta essa que foi divulgada no jornal BOM DIA e igualmente formalizada por carta.
Na carta, o deputado classificou a opção linguística como uma provocação e uma falta de respeito, recordando que o dever moral de quem representa o Estado português é falar e defender a língua portuguesa. Relatou igualmente o desconforto sentido por vários presentes e destacou a atitude de um jovem participante que afirmou, com simplicidade e dignidade, que estando na Embaixada de Portugal falaria na língua de Camões. Fê-lo. Foi respondido em inglês. O símbolo ficou exposto perante todos.
Na resposta pública, o embaixador invocou o enquadramento académico e internacional do evento, a colaboração com a Sciences Po e com o Instituto Camões, a conveniência dos oradores e a diversidade do público, explicando que as perguntas poderiam ser feitas em português, inglês ou francês, com tradução disponível, e que o objectivo do encontro não era a promoção da língua portuguesa enquanto tal, mas a reflexão histórica e política sobre os processos de independência.
A explicação existe. A justificação não convence.
É precisamente aqui que a crítica se impõe, sem comer palavras. Se os intervenientes se sentiam mais confortáveis noutra língua, podiam ter dupla nacionalidade, portuguesa e francesa, e representar a Embaixada de França, falando francês. Se havia convidados de vários lugares, podiam discursar em português e traduzir para inglês. Mal por mal, podiam ter falado francês, por se tratar de uma Embaixada em França. Mesmo assim, nada disso justifica o abandono da língua portuguesa num espaço que a tem como razão de ser.
Não está em causa o mérito académico dos oradores, nem a relevância do tema. Está em causa o gesto simbólico e político de renunciar à própria língua em nome da conveniência. Está em causa a normalização da ideia de que o português atrapalha quando se quer parecer internacional. Está em causa a imagem que o Estado português projecta para os seus emigrantes e para o mundo.
Estiveram presentes representantes diplomáticos de Angola, Brasil e Cabo Verde, bem como diplomatas de vários Estados africanos e europeus, membros do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês e representantes do movimento associativo português em França. Importa dizê-lo com clareza, nada disto justificava o uso da língua inglesa. Os países convidados são Estados cuja língua oficial é o português, países administrados por Portugal durante séculos, com os quais existe uma herança histórica, cultural e linguística comum. Falar inglês perante representantes de países de língua portuguesa, num espaço que é Portugal fora de portas, não é inclusão, é renúncia.
Mais ainda, impõe-se uma reflexão que poucos ousam fazer. Não se compreende porque continuamos a dar tanta atenção simbólica e política a esses países como se estivéssemos em permanente dívida. Portugal não lhes deve nada no plano da submissão linguística ou cultural. A história tem de ser estudada, sim, mas não ajoelhada. O diálogo faz-se de pé, na nossa língua, com respeito mútuo e sem complexos.
A Revista Repórter X denunciou e criticou o sucedido porque estas escolhas não são inocentes. Um país que não fala a sua língua na sua própria casa ensina os outros a desvalorizá-la. Ensina também os seus cidadãos a aceitarem menos do que lhes é devido.
Camões era cego de um olho. Não deixemos que Portugal fique cego dos dois.
Aponta o escritor português Quelhas.
autor: Quelhas

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