ANÁLISE POLÍTICA
OS LÍDERES EUROPEUS
Os líderes europeus fizeram o que puderam para disfarçar as suas profundas divisões perante a guerra no Médio Oriente entre Israel e o Hamas, depois do mais mortífero, bárbaro e indiscriminado atentado contra judeus desde o fim da II Guerra. Como admitiu o nosso primeiro-ministro, são demasiado profundas e demasiado vivas as memórias históricas dos países europeus para que um entendimento, mesmo que meramente declaratório, seja fácil. Entenderam-se naquilo que se esperaria deles: a condenação do ataque, o direito de Israel a defender-se, a liberdade imediata e incondicional dos reféns, o apelo a que se criem rapidamente “ pausas humanitárias” para que a ajuda possa chegar àqueles palestinianos que não têm nada a ver com o Hamas e que estão a sofrer as consequências da guerra. Apelar a um cessar-fogo seria descabido. Um cessar-fogo implica que as duas partes o aceitem. O Hamas e as outras milícias militares e terroristas que o apoiam tirariam, obviamente, proveito da situação. Acrescentaram aquilo que já todos tinham dito antes: Israel deve cumprir as leis da guerra e o respeito pela protecção dos civis que são vítimas de conflitos.
Tudo isto está certo. Tudo isto arrasta consigo uma forte sensação de impotência. Monde resume bem a situação extremamente difícil em que se encontra a União Europeia: “Gerir uma guerra nas suas fronteiras é, só por si, um teste para a União Europeia que nasceu da vontade de garantir a paz. Enfrentar duas guerras ao mesmo tempo, em que a segunda, no Médio Oriente, comporta um poderoso efeito de divisão entre os seus membros, está a revelar – se um desafio cuja dimensão os Vinte e Sete, reunidos em Bruxelas terão avaliado”.
Uma escalada do conflito terá consequências geopolíticas e económicas monumentais. A radicalização de posições relativamente a um dos conflitos mais antigos e mais “intratáveis” dos nossos dias terá consequências políticas internas na generalidade dos países da União. As vagas de anti - semitismo e de islamofobia já se manifestam em quase toda a parte. Nas ruas de muitas das suas capitais, milhares de pessoas cantam “Do rio ao mar, a Palestina será livre”. Do rio Jordão ao Mediterrâneo quer dizer sem Israel. Nas universidades americanas, os estudantes judeus são perseguidos e atacados. O Reino Unido, Keir Starmer, o líder do Labour, enfrenta uma revolta dos deputados de origem muçulmana e da velha ala radical do partido contra o seu apoio a Israel. O resultado, diz o sociólogo francês Dominique Moisi, citado pela Economist, “é um conflito de memórias” que se trava na política e nas ruas de França, ela própria vítima recente de mortíferos atentados terroristas.
Os esforços europeus para conquistar a compreensão dos países do chamado Sul Global para o se apoio à Ucrânia podem desfazer-se perante esta linha divisória que opõe o apoio ocidental a Israel e o apoio do mundo árabe e islâmico aos palestinianos, incluindo algumas vezes ao próprio Hamas.
A guerra não vai acabar amanhã. As suas consequências humanas não vão sair dos nossos ecrãs nos próximos tempos, Aquilo que os líderes europeus poderiam ter feito - mas aparentemente, não quiseram – seria ligar o ataque do Hamas a Israel na guerra da Rússia contra a Ucrânia. Tinham à sua disposição uma prova concreta. No mesmo dia em que se reuniram em Bruxelas, uma delegação do Hamas visitou Moscovo, e simultaneamente o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão. Não terá sido coincidência que dois “amigos” de Putin que se sentam no Conselho Europeu, o húngaro Viktor Orbán e o Rebert Fico, tenham intensificado a sua oposição ao apoio da União Europeia à Ucrânia.
O maior erro de cálculo de Vladimir Putin, quando decidiu lançar uma guerra em grande escala contra um país soberano na fronteira da NATO e da União Europeia, foi ter contado com a divisão e a fraqueza dos europeus. Enganou-se redondamente e as coisas correram-lhe mal. Com a guerra entre Israel e o Hamas, volta a acreditar numa oportunidade para dividir a Europa e para enfraquecer o seu apoio à Ucrânia. Para ele, as duas guerras estão ligadas. Era bom que a Europa lhe respondesse na mesma moeda, voltando a provar que o ditador russo cometeu um novo erro de cálculo.
Num longo artigo publicado no último número da Foreign Affairs, Jake Sullivan, o conselheiro nacional de segurança de Joe Biden, fundamenta uma nova fase da política externa americana para responder a um mundo que mudou radicalmente. O artigo foi publicado já depois do ataque terrorista do Hamas a Israel, mas estava escrito antes. Sullivan teve de fazer algumas alterações para corrigir a apreciação que fazia da situação no Médio Oriente, que expôs longamente numa recente entrevista à The Atlantic – que a região vivia há mais de uma década um período de estabilidade, graças em grande medida à política, seguida por Washington para tentar estabilizar o eterno conflito israelo-palestiniano “de fora para dentro”. Ou seja, através do estabelecimento de relações diplomáticas entre a maioria dos países da região e Israel, cuja cereja em cima do bolo seria a Arábia Saudita. Esta estratégia falhou parcialmente.
Mas a parte mais importante do artigo não é essa. Sullivan defende que os Estados Unidos têm de estar preparados para um mundo cada vez mais ordenado pela competição entre grandes potências, sendo que algumas delas são regimes autocráticos, como a Rússia, ou comunistas, como a China.
Nos anos 1990, a política de defesa americana era dominada por questões sobre a melhor forma de intervir em países devastados pela guerra para prevenir atrocidades cometidas contra as suas populações. Ainda nos lembramos das guerras na Bósnia e no Kosovo. Depois do 11 de Setembro, continua Sullivan, a América transferiu o foco da sua acção externa para os grupos terroristas. “O risco de um conflito entre grandes potências parecia remoto.” As coisas começaram a mudar quando a Rússia invadiu a Geórgia, em 2008, e a Ucrânia, em 2014, enquanto a China acelerava a sua modernização militar e enveredou por uma política agressiva e provocatória no mar do Sul da China e no estreito de Taiwan. Apesar disso, “as prioridades da América não se adaptaram suficientemente depressa ao desafio de dissuadir a agressão de grandes potências ou de lhes responder quando ocorressem”. O que está a acontecer no Médio Oriente, com risco de uma escalada, “não muda a necessidade de os Estados Unidos se prepararem para uma nova era de competição estratégica – em particular, através da dissuasão e da resposta à agressão de grandes potências”. É o que acontece hoje na Ucrânia. E o que pode vir a acontecer em Taiwan.
“A nova era de competição será diferente de tudo o que experimentamos até hoje”, escreve ainda Sullivan, que dedica uma parte do seu ensaio a justificar uma mudança, quase imperceptível, na política da Administração Biden em relação à China – competir e integrar ao mesmo tempo.
Esta nova orientação da política externa americana enfrenta agora um teste inesperado, na região do mundo onde já não esperava.
A Economist coloca indirectamente esta mesma questão na capa da sua edição de 28 de Outubro: “America´s Test”. “ A forma como Joe Biden gerir a guerra entre Israel e o Hamas definirá o papel global da América.” “ Indispensável ou ineficaz?”
“Enquanto as tropas israelitas esperam a ordem para invadir Gaza, dois gigantescos porta-aviões da Marinha americana foram enviados para apoiar Israel. A sua missão é dissuadir o Hezbollah e o seu patrocinador iraniano de abrir uma segunda frente na fronteira com o Líbano. Nenhum outro país poderia fazer o mesmo. Os porta-aviões são uma declaração de 200 mil toneladas do poder da América numa altura em que boa parte do mundo acredita que o poder americano está em declínio. Os próximos meses vão testar esta ideia.”
E regressemos ao princípio: a União Europeia está preparada para este mundo dominado pela competição entre grandes potências? Não está. Falta-lhe o poder militar dissuasor, que implica a vontade política de o utilizar, para ser credível face a actores internacionais como aqueles que intervêm ou podem intervir no novo conflito no Médio Oriente. E falta-lhe também a capacidade de decidir rápida e eficazmente diante das crises que estão a abalar o mundo.
O conflito no Médio Oriente foi um exemplo dramático. Devia, pelo menos, obrigá-la a pensar estrategicamente – contrariando a vontade daqueles que veem no conflito uma nova oportunidade para a dividir e a enfraquecer e para tentar separá-la do único aliado com que efectivamente pode contar. Por enquanto.
Orlando Fernandes, jornalista
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