Encontro de dois mundos à beira de um café, encontrei a
Num corredor de um hipermercado suíço, daqueles em que a pressa engole os rostos e os rostos ignoram as histórias, o acaso vestiu-se de destino. Cruzei com um homem simples, vendedor de café, sorriso pronto e verbo ágil. Palavra puxa palavra, a curiosidade foi-se a destapar como quem abre uma gaveta onde o mundo se guardou esquecido.
Descobrimos, entre o aroma do café e a música de fundo no altifalante, que partilhávamos mais do que o momento: tínhamos caprichos idênticos e um certo modo paralelo de ver o mundo. Gostamos da comunicação social como forma de tocar os outros, de levantar o véu da aparência, de servir a verdade. E ali, entre um português e um brasileiro, ambos exilados voluntários nesta terra gelada de aparência e cálculo, a Revista Repórter X e o espírito da Revista Langstrasse Zürich Offiziell apertaram-se na mão invisível da afinidade. Trocamos ideias de ‘marketing’ jornalístico. Partilhamos ideias. Os dois trabalham em áreas idênticas na revista e no seu todo, um trabalha numa gráfica e outro vende equipamento de café e as ideias que se trocaram tem muito a ver com um texto escrito umas horas antes do encontro inesperado pelo Quelhas, cujo deu a sensação que ambos escreveram o mesmo artigo sobre a Suíça incoerente, quando os dois nem se conheciam!
Falámos de Portugal e do Brasil e a polémica dos vistos, irmãos distantes de sangue e mágoa, de sol e ferida. Falámos da Suíça, essa terra onde tudo parece limpo e controlado, mas onde, por vezes, o mal se esconde por trás dos Alpes.
E de súbito a conversa virou céu:
veio à tona a Bíblia, os anjos que caíram à terra, o eterno combate entre a luz
e as sombras.
Na Bíblia, lê-se que os anjos caídos foram
expulsos do Céu para a Terra, sem que essa queda se prenda a qualquer lugar
físico definido. Não há um ponto marcado no mapa do mundo para esse evento, é
um mistério espiritual, universal. Mas eu, julgo que poderiam ter caído na
Suíça.
Porquê?
Porque este país, em vez de acudir aos seus e cuidar do justo, parece
assombrado por uma corrupção invisível que se infiltra silenciosa. Uma
corrupção que se mete onde não deve, intervindo no mundo com mãos frias,
calculistas, enquanto nega a quem o seu apoio legítimo.
A Suíça, com a sua neutralidade aparente,
com a sua ordem imaculada, tornou-se palco, talvez, de forças que trabalham
para o mal, disfarçadas de bem, quiçá Anti-Cristo!... Como se o diabo ali
encontrasse morada, sob a máscara de diplomata, gestor ou sistema.
Essa ideia assusta, mas é um alerta necessário:
o mal não precisa de chamas visíveis, porque o silêncio gelado da
neutralidade pode ser ainda mais letal.
Ali, junto às prateleiras, entre nós dois,
trocámos mais do que ideias. Semeámos a suspeita de que nem todo o inferno arde
em chamas. Há infernos gelados, perfeitos, com comboios a tempo, chocolate sem
ter cacau, café sem ter cafeína e contas bancárias organizadas. E talvez, quem
sabe, o diabo prefira esse silêncio, essa ordem, esse palco suíço de onde
observa o mundo arder com luvas brancas.
E saímos dali com a certeza de que havia
mais por dizer. Que esta conversa, improvável, improvocada, era o princípio de
algo maior. Porque quando duas consciências se encontram, nem que seja entre as
latas de conserva e o cheiro a café, acende-se uma luz. Mesmo que em terra de
sombras.
E a Revista Repórter X ouviu a Revista Langstrasse Zürich Offiziell, porque é para isto que nasceu. Para dar voz ao que se cala. Para reconhecer o que arde por dentro. Para denunciar o que a neutralidade encobre.
Com fé.
Com coragem.
Com verdade.
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