Título: “Lisboa Sou Eu”
Cresci no coração de Lisboa, entre a Avenida de Roma e a Avenida de Berna, mas foi na Rua Nova da Piedade que aprendi a ouvir o som da cidade como se fosse uma canção escrita só para mim.
Lisboa era o meu recreio, o meu quintal, o meu palco. As ruas não eram ruas, eram caminhos com alma. Lembro-me do cheiro da sardinha assada a subir pelas vielas de São Bento, das peixeiras na Praça da Figueira a gritarem com graça, dos risos nas festas de Santo António a iluminarem as noites de Junho. Lisboa era isso: voz, cor, cheiro e memória.
Ajudei muitas vezes a minha tia a entregar leite com o carrinho de mão. Íamos rua abaixo, rua acima, cumprimentando os vizinhos como se fossem todos da mesma família. Lisboa era vizinhança, era partilha. E quando o Chiado ardeu, foi como se tivesse ardido um bocadinho do nosso peito. Eu vi. Eu senti. Mas Lisboa renasceu — como sempre renasce — mais moderna, é certo, mas com aquela alma que ninguém consegue matar.
Lembro-me do tempo do 25 de Abril. Lisboa estava em festa, e eu também. As ruas cheias, os cravos nas mãos, os olhos brilhantes de esperança. Era uma cidade inteira a acordar de um sonho antigo para viver um novo.
Mas há uma Lisboa que poucos conhecem como eu conheci: a Lisboa da música. Trabalhei na Valentim de Carvalho, e ali vivi o tempo da Amália. Aqueles dias foram fado puro. Vi discos a nascerem com alma, vendi tantos vinis, tantos sonhos em forma de canção. Ouvia a voz da Amália antes de ela chegar às casas das pessoas, sentia o fado ainda quente, recém-gravado, como se fosse um segredo que Lisboa sussurrava ao mundo. Amália era Lisboa. E Lisboa era fado.
Corri vezes sem conta desde São Bento até Santa Apolónia, atravessando a cidade como quem atravessa a própria vida. Passava pela Rua da Boa Vista, pelos bares que se enchiam de risos e promessas, e ali, entre o cheiro do mar e o som dos passos, Lisboa sussurrava-me ao ouvido: “Não te esqueças de mim.”
Hoje, Lisboa está diferente. Mais moderna, mais apressada. Mas eu continuo a vê-la com os olhos da infância, com os pés descalços do tempo, com a alma cheia de saudade. Para mim, Lisboa é a cidade mais bonita da Europa. Não pelos monumentos — mas pela memória viva em cada esquina.
Lisboa sou eu. Sou eu em cada rua, em cada azulejo, em cada janela onde ecoou o fado. Sou eu naquele disco que vendi com carinho, naquela bica tirada no Café Nicola, naquele elétrico 28 que me levava aos sonhos. Lisboa está em mim, como uma promessa que não se quebra.
E se um dia me derem um palco, eu não subirei sozinha. Levarei comigo as ruas de Lisboa, a voz da Amália, o cheiro do pão quente, o riso da minha tia, o tilintar dos copos num arraial. Levarei Lisboa inteira, porque Lisboa não é só uma cidade.
Lisboa é quem fui, quem sou — e quem nunca deixarei de ser.
Autoria Zezinha Peniche
Revista Repórter X Editora Schweiz Oficial
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