Do veneno à salvação: Que medicamentos tomam os transplantados renais?
Que cocktail de comprimidos garante que um rim estranho seja aceite num corpo ferido? E que preço biológico pagam por isso — que efeitos secundários, que fraquezas, que silêncios pairam em cada dose diária?
Poucos sabem responder. Muitos nem sequer perguntam. A medicina moderna, poderosa e fria, entrega as caixas e manda seguir. Mas por trás de cada pílula há um laboratório, uma história, uma molécula isolada, um caminho químico — e às vezes, um animal.
Os transplantados tomam imunossupressores. Drogas como a ciclosporina, o tacrolimus, o micofenolato de mofetil. Estas substâncias impedem o sistema imunitário de rejeitar o novo órgão. Mas também os tornam vulneráveis: a infecções, a tumores, a cansaços inexplicáveis. Os rins, paradoxalmente, são protegidos e agredidos ao mesmo tempo.
E mais: muitos destes doentes tomam também medicamentos para a hipertensão, já que a função renal — mesmo com o transplante — permanece delicada. É aqui que entra uma família de medicamentos cujo nascimento foi quase poético: os inibidores da enzima conversora da angiotensina, os famosos IECAs.
Entre eles, o primeiro e o mais singular: o captopril.
Quem imaginaria que uma cobra das matas brasileiras, a temível Bothrops jararaca, guardava no seu veneno a chave de um tratamento que salvaria milhões de corações e rins?
Na década de 1960, investigadores brasileiros repararam que a picada da jararaca provocava uma queda acentuada da pressão arterial. Intrigados, isolaram os peptídeos activos do veneno e descobriram que estes inibiam a enzima conversora da angiotensina (ECA), impedindo a formação de uma substância vasoconstritora: a angiotensina II. Essa enzima, quando inibida, permite que os vasos se dilatem, a pressão baixe, e o coração respire.
A descoberta chegou aos laboratórios da Squibb (hoje Bristol-Myers Squibb), e ali nasceu o captopril, o primeiro IECA, derivado directamente da estrutura química natural do veneno da cobra. Um fármaco vindo da floresta, que abriu caminho para outros: enalapril, ramipril, lisinopril, perindopril — todos sintéticos, todos inspirados no veneno, mas sem a sua origem animal.
O captopril, porém, mantém essa linhagem viva: uma ponte entre o selvagem e o científico, entre a ameaça e a salvação.
Para os transplantados renais, esta classe de medicamentos tornou-se essencial. Os IECAs não só ajudam a controlar a pressão arterial, como também protegem o rim transplantado do desgaste provocado pela hipertensão e pelos efeitos tóxicos de outros medicamentos. São um escudo silencioso, uma defesa bioquímica que nasceu da escuta da natureza.
Hoje, dezenas de milhões de pessoas — transplantados, diabéticos, hipertensos — tomam diariamente comprimidos que descendem de uma serpente. Vinda da mata, ela trouxe não só medo, mas também vida. Não há ironia: há sabedoria.
Num tempo em que nos afastamos da terra, das raízes, da escuta, a história do captopril recorda-nos que o remédio pode vir da ferida. Que o veneno pode curar. E que a humildade diante da natureza é, ainda, o mais sábio dos medicamentos.
Do veneno à salvação, é um caminho feito de perguntas, de observação e de coragem para ver a cura onde antes víamos apenas perigo.
Mas nem tudo vem de serpentes. Muitos dos medicamentos tomados pelos transplantados têm também origens inesperadas, tão discretas como extraordinárias.
A ciclosporina, por exemplo, foi descoberta em 1971 num solo recolhido nas florestas da Noruega. A substância activa foi isolada de um fungo chamado Tolypocladium inflatum. Não era nem árvore nem animal, mas um organismo microscópico, enterrado na humidade da terra. A farmacêutica suíça Sandoz, hoje parte do grupo Novartis, foi a responsável pelo desenvolvimento clínico da molécula e pela sua consagração como o primeiro grande imunossupressor moderno. Graças à ciclosporina, os transplantes deixaram de ser aventuras de risco e passaram a ser terapias com esperança.
Outro nome bem conhecido dos transplantados é o CellCept, cujo princípio activo é o micofenolato de mofetil. Esta substância é uma versão modificada do micofenólico, isolado pela primeira vez no século XIX a partir de um bolor encontrado em cascas de maçã e madeira velha. O medicamento, na forma como é usado hoje, foi desenvolvido pela farmacêutica suíça Roche, e continua a ser fabricado em países como a Suíça, Alemanha e Estados Unidos. É uma peça essencial no regime imunossupressor moderno, actuando de forma complementar à ciclosporina ou ao tacrolimus.
Também os níveis de colesterol precisam de ser controlados após um transplante, para proteger o sistema cardiovascular e evitar a rejeição crónica. Aqui entra a rosuvastatina, comercializada sob o nome Crestor®. Foi desenvolvida pela AstraZeneca, com centros de produção no Reino Unido, Suécia, Irlanda e nos Países Baixos. A rosuvastatina é uma estatina sintética, mas a sua origem científica está ligada às estatinas naturais inicialmente isoladas de fungos como o Aspergillus terreus. Mais uma vez, é da vida escondida na terra que nasce o remédio.
Por fim, há também medicamentos menos conhecidos, de fabrico tipicamente suíço, como o Zortress® (everolimus), desenvolvido pela Novartis, que actua como imunossupressor em transplantados e também como agente contra certos tumores. O everolimus é uma derivação da rapamicina, descoberta nas ilhas da Páscoa — isolada de uma bactéria chamada Streptomyces hygroscopicus. A substância foi encontrada em amostras de solo recolhidas por uma expedição canadiana nos anos 1970. Da terra remota nasceu um agente terapêutico de alto alcance.
É pois justo dizer que muitos dos comprimidos tomados diariamente por quem vive com um órgão transplantado vêm do solo, dos fungos, das bactérias, das florestas esquecidas. A farmacologia não nasce do nada — nasce de um mundo que respira em silêncio, onde a ciência, quando escuta, descobre.
Cada comprimido tem uma história, cada nome um eco de longe. Do solo norueguês ao Japão, das ilhas do Pacífico às matas do Brasil, os medicamentos dos transplantados são herança do mundo natural. E lembrar isso é, também, respeitar o corpo que os recebe e a vida que os sustenta.
autor: Quelhas
Revista Repórter X Editora Schweiz Oficial
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